Verne não foi apenas o contador de histórias mais imaginoso de todos os tempos - uma espécie de Leonardo da Vinci da ficção -, mas também o criador de uma mitologia singularmente estruturada a partir das crenças filosóficas e científicas de sua época. Encantou Proust, Rimbaud (cujo Bateau Ivre seria uma recriação poética e ébria do Náutilus de Vinte Mil Léguas Submarinas), Raymond Roussel, Julio Cortázar, Nietzsche (cujo Zaratustra seria a reencarnação filosófica do capitão Nemo), Michel Butor (que vislumbrou a presença do escritor nas pinturas de Max Ernst, Rousseau e na poesia de Lautréamont).Entre nós não foi diferente. Data de 1875, com A Ilha Misteriosa ainda fresca nas livrarias da França, a primeira ficção brasileira de inspiração verniana: O Doutor Benignus, de Augusto Emilio Zaluar. Outras haveria, nenhuma com a qualidade literária e a sutileza de Lições de Abismo, a "viagem ao centro da Terra" de Gustavo Corção.Interessado em ciência desde menino, como Voltaire, Balzac e seu assumido mestre Edgar Allan Poe, o visionário de Nantes foi o produto literário mais delirante que o cientificismo do século 19 gerou com os olhos voltados para o século 20. Verne intuiu e imaginou (ou inventou entre aspas) diversos prodígios mecânicos, químicos e até eletrônicos, como o submarino (o do holandês Cornelius Drebell, dois séculos mais novo que o Náutilus, não passava de um bolsão de couro), o escafandro, o batiscafo, o dirigível, o helicóptero, o trator e o automóvel, o gás asfixiante, o canhão de longo alcance, a fotografia em cores, o hidroavião, a vitrola, o cinema, a televisão, os computadores, a bomba atômica, o cinema em 3-D - e um vasto etc. Seu recorde nessa especialidade, tudo leva a crer, jamais será ultrapassado.A paixão pelo experimentalismo passou-a a seus alter egos: o capitão Nemo (precursor de Drebell e também de Jacques Cousteau), Robur (precursor de Santos Dumont), o capitão Hatteras (que foi verificar a existência de um mar livre no Polo Ártico), o professor de Viagem ao Centro da Terra (que foi validar in loco a teoria do fogo central), para ficarmos só nos mais conhecidos. Mas a vaidade, o excesso de autoconfiança e o messianismo dos cientistas o atemorizavam. Robur, o conquistador que em 1886 surge como um protótipo do admirável homem novo moldado em Nemo, mais parece um avatar de Lúcifer ao ressurgir, uma década mais tarde, em O Senhor do Mundo. Não foi por acaso que, no cinema, entregaram esse papel a Vincent Price.Além das profecias, utopias e distopias, Verne notabilizou-se como um intérprete glutão dos grandes acontecimentos políticos e sociais do século 19, como um correspondente de guerra e conflitos que nunca precisou sair de seu gabinete. Em seus romances "cobriu" a guerra dos Boers na África, a resistência de El Hadji Omar às tentativas francesas de conquistar o Senegal, o estabelecimento da autoridade chilena nos Andes, a guerra de Secessão americana, a venda do Alasca e outros territórios pelos russos, a corrida do ouro na Califórnia e na Austrália, as pressões do governo Theodore Roosevelt sobre a América Central e o Caribe, a insurreição Taiping na China Central, a guerra de independência da Grécia, a guerra da Crimeia, os movimentos de emancipação nacional dos húngaros, escoceses, irlandeses, búlgaros e noruegueses, a eclosão do anarquismo na Itália, Rússia, França e na América. E, em A Jangada - 800 Léguas pelo Amazonas, a proclamação da República no Brasil.Muitas posições políticas assumidas por seus personagens conflitam com as do conservador que ele sempre foi, defensor da ordem a qualquer preço, da mulher no fogão ou num canto a tricotar, adversário dos que apoiavam Dreyfus, das sufragistas e dos communards de Paris. Vinte Mil Léguas Submarinas talvez seja sua aventura mais pessoal, a mais contaminada por suas secretas simpatias libertárias.Nemo termina abjurando seus princípios e questionando sua misantropia. Seu lamento final - "Deus todo-poderoso! Basta! Basta!" - foi uma concessão ao editor Hetzel e ao público. Verne e Hetzel discutiram extensamente sobre a identidade política de Nemo. Hetzel queria justificar as ações de Nemo como uma consequência de sua luta contra a escravidão, mas Verne não aceitou: para ele, Nemo afundava o navio inglês simplesmente porque fora provocado. Mas é claro que o escritor, e não apenas o comandante do Náutilus, considerava a escravidão um dos "horrores da civilização". Hetzel, pragmático, era contra a escravidão porque o seu fim, segundo os economistas da época, representaria um importante salto para o futuro e resultaria na ampliação do mercado consumidor.As sociedades industriais então trocavam o colonialismo pelo imperialismo. Atento a todos os seus movimentos, Verne inseriu-os em sua ficção. E assim foi que o futuro ganhou um grande repórter.