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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|O livro ficou guardado por 30 anos

Num fim de tarde de 1986, ameaçava chuva e eu estava com uma jovem de nome Márcia, era o começo de relacionamento, decidimos ir ao Cine Belas Artes. Ao chegar à esquina da Avenida Paulista com a Rua da Consolação, paramos naquelas bancas de livros de segunda mão, que enxameavam na região. Eram muitas, espalhavam-se pelas calçadas, outras dentro da passagem subterrânea que ia dar no bar Riviera. Ponto propício, o Belas Artes era frequentado por intelectuais e descolados. Sou daqueles que não passam incólumes por uma banca de livros. Márcia me advertiu, a sessão ia começar, devíamos nos apressar.

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Atualização:

Fui atraído por um livro de capa branca, com dois anjinhos coloridos e muitos corações vermelhos, o nome do autor em letras vermelhas grossas. Era o meu romance O Beijo Não Vem da Boca, lançado em 1984, assim que cheguei de Berlim, onde morei dois anos. Aquele exemplar era uma terceira edição. Abri, havia uma dedicatória: “Edna, este é o meu modo de dar receitas. Consegui colocar duas neste livro. Mas para colocá-las tive de escrever quase 500 páginas. A data, 5 de agosto de 1985”. Eu disse a Amazilio Consolino, dono da banca que eu conhecia, passava sempre por ali: “Fico com ele”. Adoro comprar livro meu em sebo. Neste momento, despejou um toró. Igual a estes que, ultimamente, vêm caindo sobre esta cidade. Como se diz no interior, ‘malhô água pra valer’. Márcia me puxou, começamos a correr, Amazilio, recolhendo os livros, gritou: “Guardo para você”.

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Quando saímos do cinema, as ruas estavam desertas, o aguaceiro continuava, nos metemos num táxi. E me esqueci do livro. Daí que Márcia e eu nos casamos e, recentemente, ao entrarmos de novo no Belas Artes, ela lembrou: “E aquele livro que você pediu para o livreiro de rua guardar?”. Puxa, passaram-se 30 anos, tempo de nosso casamento. Acontece que esta cidade muda muito e depressa. Os livreiros de rua junto ao Belas Artes (que ficou fechado e foi reativado) desapareceram, alguns abriram os próprios sebos em lojas.

Ano passado, em outubro, participei da Viagem Literária promovida pela Secretaria de Cultura do Estado, quando 80 escritores partem em todas as direções, fazendo cinco cidades seguidas. Em geral, cidade menores. Um barato, falamos nas bibliotecas municipais. É um dos mais bem estruturados programas para formação de leitores e incentivo à frequência de bibliotecas que conheço neste Brasil. Fim de tarde, lá estava eu em Registro que, por sinal, tem belíssima biblioteca. Ao terminar a conversa, abri para o público: perguntem. Um sujeito calmo veio em minha direção. De onde eu o conhecia? De onde? Tentei lembrar-me rápido. Ele foi educado: “O senhor não vai se lembrar de mim, sou Amazilio, tinha a banca de livros na Avenida Paulista, junto ao Belas Artes. Aqui está o livro que reservou. Lembra-se”. Claro que a cena me veio límpida. Abri o embrulho, era O Beijo Não Vem da Boca que eu, para fugir da chuva e querendo ir ao cinema, tinha pedido para ele guardar. Emocionado, feliz, perguntei: “Guardou esses anos todos?”. Ele fez que sim com a cabeça. Desconcertado, sem saber como agir, indaguei: “Preciso pagar, era o seu trabalho”. Ele riu muito: “O que é isso? Não sou mais livreiro, hoje sou técnico na biblioteca da Unesp, aqui na cidade. O livro é um presente. Quando minha mulher me avisou que o senhor viria hoje a Registro, disse: Agora, entrego a encomenda”.

Amazilio é casado com Katia Rubattini, de uma tradicional família circense. Eles tiveram livraria na Ilha Comprida. Ela continua lá na biblioteca, ele decidiu mudar de ares. Ambos foram amigos de Caio Fernando Abreu e de Paulo Leminski. Trinta anos mais tarde, o livro que eu quis e não levei, veio para mim. Bem conservado. Esses pontos que a vida liga me assombram, levanto sempre a questão do acaso ou coincidência. Ou como dizem hoje, simultaneidade. E quem é (ou era) essa Edna, que decidiu vender o livro por necessidade ou por ter se decepcionado?

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PS: Domingo passado, minha mulher, minha filha e duas sobrinhas foram ao Teatro Municipal assistir a um concerto. Calor imenso, todas as portas abertas, da rua vinha o barulho do trânsito e das vozes. Súbito, o maestro desmaiou, acabou o concerto. O teatro tem uns três vasos sanitários femininos funcionando. Filas imensas e nos corredores minhas sobrinhas viram baratas mortas. Para registro.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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