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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O livro da Imitação

O que diria o autor Tomás de Kempis dos cristãos atuais? Impossível responder

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Atualização:

Dizem que Albino Luciani, o sorridente papa João Paulo I, morreu lendo o pequeno livro. Parece sempre ser obra que reúne a dupla fama de tratado profundo e de simplicidade despojada. Foi um dos livros mais traduzidos do mundo. Atribuímos, com relativa certeza, a um padre chamado Tomás (1379-1451). O sobrenome familiar remetia a uma profissão: Hemerken, pequeno martelo. O pai era ferreiro. Associado a uma cidade do vale do Reno, Kempen, foi conhecido pela forma latinizada do lugar: Tomás de Kempis. Trata-se d’A Imitação de Cristo.

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A obra está dividida em quatro partes. A primeira contém “avisos úteis à vida espiritual”. A segunda realiza “exortações à vida interior”. A terceira tem um diálogo de Jesus sobre a “consolação interior” e a quarta, e última, trata do “sacramento do altar”. O movimento espiritual do século 15 no qual a Imitação está inserida é a Devoção Moderna (Devotio Moderna). Suas raízes estão no fim do século anterior, nas áreas flamengas e germânicas. O ambiente externo era complexo: o fim do papado em Avignon, que tinha causado uma divisão entre dois (e depois três) papas. Comunidades religiosas chamadas “irmãos de vida comum” tinham desejado uma vida mais simples, centrada no modelo do Cristianismo primitivo, nos Evangelhos, nas epístolas de Paulo e no sacramento da eucaristia. Eram profundamente católicos, porém enfatizavam pouco a devoção aos santos ou as práticas medievais como as relíquias.

Combatiam o automatismo das preces e da liturgia e queriam um contato pessoal, orgânico, denso e de entrega ao modelo supremo: Jesus. Se uma comunidade monástica medieval era voltada ao uso dos salmos e de orações sistemáticas, os irmãos modernos queriam que o fiel visse como ele se insere em cada passagem bíblica, como poderia projetar sua meditação existencial nesta ou naquela passagem. Com um certo reducionismo impreciso, eram mais afeitos à meditação pessoal do que ao uso do rosário. Meditações sistemáticas, modelo cristocêntrico, humildade como valor e uma certa desconfiança da erudição teológica podem ser alguns sinais amplos da Devoção Moderna. A perspectiva era antiespeculativa, ou seja, não buscava uma definição sofisticada da natureza de Deus, todavia a vida prática dos ensinamentos cristãos. O fiel anelava por uma união pessoal com Jesus e, por isso, a eucaristia era fundamental. Lembremo-nos de que a comunhão não era, como hoje, frequente para os fiéis. Muitos católicos medievais recebiam a hóstia apenas em ocasiões solenes. Havia um debate forte sobre crianças terem condições de se aproximar do altar (o debate se estende até o pontificado do papa São Pio X, 1903-1914).

A Imitação alcançou enorme popularidade. Circulou como manuscrito no século 15 e, depois da imprensa, era livro obrigatório em bibliotecas e cabeceiras. Santo Inácio de Loyola foi muito influenciado por ela. Tinha um exemplar quando concebeu os Exercícios Espirituais. Várias indicações da espiritualidade jesuítica dialogam com a influência da Devoção Moderna: meditação sobre a vida de Jesus, exames de consciência, busca do propósito de vida (eleição), etc. Propunham uma espiritualidade interiorizada, pessoal, de adesão do indivíduo ao plano de Deus.

Lutero também estimou os textos da Devoção Moderna. A mística abstrata que separou a vida cristã prática de reflexão teológica era estranha para reformados e católicos. Reunir discurso e prática na sua existência, desconfiar de um Cristianismo vivido em êxtase místico e confiar na ação efetiva e na oração pessoal era um tema forte a partir da espiritualidade daquele momento.  Um mundo simples e denso é a dicotomia eterna da Imitação. Quer atingir a paz? Recomendação concreta (cap. 23 do livro 3): fazer antes a vontade alheia do que a sua, ter menos do que mais, buscar o último lugar e sujeitar-se a todos. Pronto: surgirá a paz no fiel. Algumas frases soam como de um coach moderno: “Lembra-te sempre do fim, e que o tempo perdido não volta” (livro 1, 25). As desgraças da vida? Excelentes para você lembrar que vive em desterro, exilado, e que nada no mundo é digno de esperança permanente (Livro 1, 12). Um programa de vida? Cada ano extirpar um vício (livro 1, 11). Desanimar porque caímos em erro e pecado?

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Sim, mas lembrando que isso é prova de que somos humanos e fracos e que necessitamos da Graça de Deus. Até o erro serve para lembrar sua posição no mundo (livro 3, 57). Tocando na desconfiança da especulação teológica: “Toda razão e pesquisa natural deve seguir a fé, não precedê-la, nem enfraquecê-la”. (livro 4, 18). Um pouco antes, no mesmo trecho, Tomás estabeleceu que Deus anda com os simples e “a razão humana é fraca e pode enganar-se, mas a fé verdadeira não se pode enganar”. Melhor é o humilde camponês, diz no começo da obra, do que o teólogo soberbo (livro 1, 2).

O que diria Tomás de Kempis dos cristãos atuais? Impossível responder. O extraordinário é a vitalidade do texto e a clareza da mensagem. Boa semana para todos que imitam a si, à propaganda, ao chefe ou a Jesus. 

Opinião por Leandro Karnal
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