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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|O jornal como ventura

É com muito prazer que, ao lado de tantos jornalistas ilustres, venho expressar minhas felicitações a esses produtivos 30 anos do Caderno 2, o pedaço deste periódico no qual eu venho escrevendo semanalmente, de maneira aventurosa e venturosa, desde julho de 2001.

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Atualização:

Falo em ventura, pensando em destino e em aventura, imaginando escolhas, porque foi exatamente desse modo que, saindo das fileiras acadêmicas, cheguei aos jornais.

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Não foi um caminho dramático. Um dia, Fernando Mitre, que dirigia o Jornal da Tarde, encomendou-me uma leitura de São Paulo. Inseguro e feliz, com o gosto da aventura de narrar uma cidade, aceitei. Logo em seguida, num julho de 1993, esse mesmo desavisado Mitre me convidou para jantar. Eu cheguei lá pelas 8 e, enquanto esperava, tomei uns 3 Joãozinhos. Lá pelo quinto copo, chega o Mitre e, com sua gentileza habitual, desenha o formato de um coluna e, ato contínuo, mas antes que eu estivesse totalmente de porre, possuído, oferece-me escrever regularmente no JT.

Ao chegar ao hotel, avaliei o tamanho do risco, minorado pelo fato de estar ensinando fora do Brasil, o que me impedia de saber de um provável fracasso. Mas o destino, como se diz no jornal, assim não quis. E, depois de 401 crônicas, escritas até o ano de 2001, foi a vez de Fernão Mesquita me convidar para fazer o mesmo neste aniversariante caderno do Estadão. Hoje, elas chegam a 709 narrativas que, a partir de 2005, são também publicadas no Globo.

Como o momento é de aniversário, e aniversário é balanço, não posso deixar de registrar que não é todo dia que um homem, cujo destino sempre foi atrelado ao estudo das sociedades e culturas por meio da Antropologia Social, consegue se manter ativo em dois jornais de tamanha importância, usando como ferramenta de base a sua imaginação, os seus livros, os seus palpites – absolutamente solitário e acompanhado apenas por suas várias consciências, sem cometer nenhum desatino ou ofensa a nenhum grupo, categoria social, partido político ou matéria duvidosa, nas mil e tantas crônicas que publicou.

O que dizer dessa experiência?

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Conforme remarquei, no meu último livro – Brasileirismos: além do jornalismo, aquém da antropologia e quase ficção (Rocco, 2015) –, um texto no qual juntei algumas dessas crônicas, a mais arriscada travessia, quando um professor universitário aceita escrever semanalmente em jornal, é o seu medo de não ter assunto. Claro que a ausência do que falar ocorre a todos os cronistas, mas, no professor, ela é assombrosa, porque, afinal de contas, os “mestres” são treinados para escrever ensaios e livros, que não devem ser esquecidos, e, mais que isso, que sejam cobertos pela pátina da eternidade. Esse é o modelo, tanto que publicar em revistas internacionais exige o julgamento de colegas. Um nils obstat garantidor de sapiência num dado assunto. Escrever para o público universitário tem esse viés de julgamento, que confirma uma presunçosa (mas legítima) perenidade. Nesse tipo de escrita, o autor quer resolver um problema ou esclarecer uma velha questão. Dir-se-ia que tais são literaturas que aspiram a uma “longa duração” e, como tal, serão farol para quem é do campo.

Ora, no jornal, ocorre o justo oposto. Quem é capaz de lembrar ou, até mesmo, de colecionar esses textos, quando hoje eles são digitais e vivem nas nuvens? Ademais, que coisa triste é ver a sua crônica devida publicada num caderno que suja os dedos e serve, entre outras coisas, para embrulhar o peixe. Eis, numa pílula, o que este autor de textos de longa duração receou quando aceitou escrever de 7 em 7 dias para um meio cujas narrativas são de “curta duração”. Pois o jornal só sai do armário quando serve de prova para alguma contradição, quando devolve à memória coletiva algo esquecido ou quando exprime de modo contundente alguma rotina vil ou condenável, como os roubos de um partido, de um caudilho ou de todo um governo. Daí, o jornal ter essa marca de “realidade”, sendo a nossa máquina de fabricar “fatos”.

Ao ter que matar um dragão por semana, conforme digo aos meus amigos, eu rompi com esse lado sagrado (e inibidor) do escrever. Essa dimensão que todo jornalista profissional conhece, pois o jornal é feito para passar, mas o livro é fabricado para ficar. Não é por acaso, que todo jornalista escreve algum livro que ele promove com orgulho como, pela mesma moeda do narcisismo, acadêmicos raramente se recusam a escrever num periódico com a fantasia secreta de que serão lidos por milhões!

De um lado, contribuir para a grande pirâmide; do outro, influenciar ou quem sabe mudar o curso da história. Quem saberia a resposta correta, exceto o contexto e a oportunidade? O que posso modestamente dizer, como um anfíbio orgulhoso de ter praticado essas duas escritas, é que o jornal me abriu a uma imensa liberdade interior, situada justamente no “ter que escrever”. Coisa que, como tenho testemunhado ao longo de uma velha carreira acadêmica, tem bloqueado muita sabedoria.

Finalmente, há o tal mercado e o famoso leite das crianças. Livros acadêmicos só vendem – como me disse uma vez um experiente editor de livros universitários – depois de um 50 anos. Já o rotineiro jornal e a crônica corriqueira, ajudam a fechar o mês.

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Opinião por Roberto DaMatta
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