O jazz que vem da Etiópia

Mulatu Astatke fez com os sons de seu país um gênero novo. E o mundo todo[br]parou para ouvir

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Por Ramiro Zwetsch
Atualização:

Bill Murray está largado no sofá com o mesmo olhar perdido do filme Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola. Seu personagem aqui é Don, de Flores Partidas, de Jim Jarmusch. Uma carta anônima o atormenta: ele teria um filho, já adolescente, que quer conhecê-lo. Um vizinho tenta apaziguar as inquietações do amigo e coloca um CD: "Música etíope, faz bem ao coração", diz ele. A faixa que toca é Yèkèrmo Sèw, de Mulatu Astatke, e as palavras do vizinho, interpretado por Jeffrey Wright, definem com simplicidade o impacto do primeiro contato com a obra do maestro, arranjador, instrumentista e compositor. Aos 68 anos, ele se apresenta em São Paulo hoje e amanhã, no Sesc Vila Mariana, com ingressos esgotados para os dias em menos de duas horas. Mulatu é um dos músicos mais cultuados de todo continente africano e um jazzista com um sotaque de causar ao mesmo tempo fascinação e estranheza aos ouvidos ocidentais. Seu vibrafone projeta paisagens sonoras do Oriente Médio e sua percussão balança num calor caribenho - tudo meticulosamente entrelaçado. Essa combinação foi batizada de ethio-jazz nos anos 70, num raríssimo caso de um gênero musical associado quase que totalmente a um único artista. Os anos 80, no entanto, foram ruins para a Etiópia e para Mulatu. Enquanto guerras e fome devastavam o país, o músico parou de gravar. A redescoberta começou no final dos anos 90, por intermédio de DJs e relançamentos, e se amplificou com o filme Flores Partidas. No ano passado, ele lançou o disco Mulatu Steps Ahead, mais de 30 anos depois sem um trabalho solo. Em turnê, atendeu ao telefonema do Caderno 2+Música em Londres, um pouco antes de embarcar para o Brasil. Como o senhor criou o gênero conhecido por ethio-jazz? Foi há mais ou menos 40 anos. Eu morava nos Estados Unidos, entre Boston e Nova York. Eu tinha um grupo, que misturava música etíope com jazz. A música etíope é sempre baseada em um conjunto de escalas de cinco notas e o ethio-jazz são essas cinco em choque com as doze da escala ocidental. Para manter a atmosfera do som, eu sempre tenho que tomar cuidado para manter as cinco notas dominando, lá em cima.Sua música é cinematográfica, projeta imagens ao ouvinte... São as fusões, a maneira como misturo essas escalas e como componho. Você sabe, o homem pode ver os seus sentimentos e a música espalha isso. A música de Mulatu Steps Ahead pode ser chamada de ethio-jazz ou é um estilo novo? Existem composições com um novo estilo dentro da música jazz. Os outros trabalhos que fiz também tinham mais de um pensamento nas composições, mas as coisas tinham começo e fim. Em Mulatu Steps Ahead existem músicas com diferentes humores e andamentos. Fazer diferente faz com que o músico pense e trabalhe mais. Como era tocar jazz na Etiópia nos anos 60? Havia muitas bandas, big bands e orquestras, mas eu sempre quis ser diferente de tudo isso. Eu queria tocar jazz do jeito etíope e a abordagem era diferente naquela época, era mais difícil. Isso foi há mais de 40 anos, hoje todos tocam jazz: a América toca seu jazz, a Suécia toca seu jazz, a Alemanha toca seu jazz. Estou muito feliz por tocar no Brasil. No futuro, quero fazer contato com músicos brasileiros para um projeto. O senhor tocou com Duke Ellington em 1973, durante uma turnê pelo Egito. Como foi? Vou admirar Duke por toda minha vida. Assim como Quincy Jones. Foi como mágica ter a chance de tocar com ele. Ele fazia lindos arranjos baseados nas músicas de igreja. Eram bons tempos, muito bonitos. É verdade que o senhor gravou com Alice Coltrane (jazzista morta em 2007, que foi casada com John Coltrane)? Sim, nós fizemos algumas músicas quando ela foi para a Etiópia. Gravamos em uma estação de rádio.E onde está esse material? Bem, foi gravado em uma estação de rádio. Provavelmente ficou guardado lá. Estou procurando isso, mas viajo muito tocando e fico pouco em casa (na capital da Etiópia, Addis Adaba). Mas preciso insistir com o pessoal da rádio para encontrar essas gravações. Como surge a inspiração de suas músicas? As coisas surgem na minha mente. Eu ando bastante e quando eu ando as coisas vêm. É assim que funciona. Qual foi a importância do filme Flores Partidas para a redescoberta de sua música? Jim Jarmusch é um diretor que admiro e que realmente pensou na minha música. Depois do filme, tive uma experiência diferente em Nova York: toquei em alguns lugares como o Winter Gardens e havia jornalistas do New York Times e do Los Angeles Times em todos os shows. Todos fizeram boas críticas e resenhas sobre os shows, sobre o ethio-jazz e sobre o filme. E qual é a sua expectativa para os shows em São Paulo? Estou muito, muito ansioso mesmo. É minha primeira visita ao Brasil e realmente me interesso pelo seu país. Toda a turnê tem sido bem-sucedida, todos os shows com ingressos esgotados. É uma coisa muito boa, meu amigo.

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