O islã visto por seu lado belo

CCBB abre exposição com 300 peças históricas vindas de museus da Síria e do Irã, além da África

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
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Um pequeno objeto do século 12 semelhante a uma coroa mas que poderia ser um bracelete, todo decorado com motivos florais, se destaca numa vitrine com peças de cobre na exposição Islã: Arte e Civilização, aberta a partir de hoje (para convidados) e amanhã (para o público) no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB/SP). Essa coroa, contudo, não é nem uma coroa nem um bracelete: é um fragmento de tubulação de água, o que traduz não só o refinamento ornamental da arte islâmica como a meta que tinham os artesãos muçulmanos de atingir a perfeição, mesmo em lugares inacessíveis ao olho. E essa perfeição está por toda a parte na exposição do CCBB, que reúne mais de 300 peças produzidas do século 8 em diante, vindas dos principais museus da Síria e do Irã, além do Líbano e países africanos.Há de tudo nessa exposição com curadoria do professor Paulo Daniel Farah e Rodolfo de Athayde, de fragmentos originais do palácio Al-Hair Al- Gharbi, na Síria Central, construído no século 8.º, a peças de mobiliário, passando por objetos de cerâmica, tapetes, roupas, armas, mosaicos, iluminuras, instrumentos musicais e uma sala exclusivamente dedicada à caligrafia, a preferida do curador Daniel Farah, grande tradutor do árabe que prepara para breve um livro sobre arte islâmica dedicado às crianças. Nela se encontra a peça mais antiga da exposição, uma pedra de basalto em que estão inscritos os vários nomes de Deus com um requinte caligráfico que explica por que a arte islâmica incorporou a caligrafia - atividade nobre e sagrada no Islã - aos motivos decorativos de seus objetos cotidianos.Há na mostra curiosos exemplos de peças que fazem usos da caligrafia associada a motivos geométricos, como uma tigela azul do século 13, reveladora da influência que os chineses tiveram sobre a arte islâmica, especialmente o lustro metálico, a segunda maior inovação, depois da faiança, no período abássida (dinastia de califas árabes que dominou, entre os século 8.º e 13, o território que hoje pertence ao Iraque). O curador Daniel Farah observa que a cor azul foi introduzida no século 12 na fabricação de objetos de cerâmica, antes dominada pela cor verde, a preferida do profeta Maomé, talvez por representar simbolicamente a abundância da natureza, justamente o que os povos do deserto idealizam em terreno tão árido.A linha curatorial da exposição privilegiou os objetos não pertencentes ao espaço religioso da cultura muçulmana justamente para desfazer um equívoco comum entre os ocidentais , o de que a arte islâmica se resume a motivos geométricos e arabescos, abolindo a figura humana e animais, por serem criações divinas. Há, claro, tapetes de oração, mas também peças de tapeçaria em que abundam pequenos quadrúpedes e espécies vegetais, embora conservando a simetria, forte evidência da inclinação mimética do artesão para imitar a natureza e o Criador. Apesar da censura à representação figurada, expressa particularmente após o 9.º século, não há, segundo o curador Farah, qualquer interdição explícita à representação de seres vivos no Corão.As iluminuras da mostra provam que a arte islâmica explorou bem a figura humana em livros cuidadosamente manufaturados. Há vários exemplos da função didática dessas iluminuras que ilustram desde a epopeia do Irã (a antiga Pérsia, cuja história remonta a 3200 a.C.) até rituais islâmicos, passando por contos de amores impossíveis como o de Laila e Majnun, o mais popular do mundo islâmico, uma espécie de Romeu e Julieta em que Majnun, poeta com dificuldades de visão, se apaixona e enlouquece quando o pai de Laila impede a união do casal.O trânsito entre a cultura islâmica e europeia, aliás, é facilmente identificável na arquitetura, no vestuário e peças de adorno. Há belos exemplos na mostra. Os árabes deixaram sua marca na literatura e na ciência da Península Ibérica, mas também entre os africanos que, convertidos ao islamismo, contribuíram para a expansão da cultura muçulmana. Escravos da etnias hauçá e nagô, os malês, que provocaram uma revolta na Bahia, em 1835, estão representados na mostra por sua caligrafia sofisticada, mil vezes mais elaborada que a dos senhores brancos que os dominavam. "Os ornamentos dos malês que agregam símbolos de proteção (os patuás) e roupas, não só para rituais religiosos, mostram como a tradição islâmica foi assimilada e conservada por eles", diz Farah. "Só não conseguimos trazer peças do museu Topkapi, por uma questão de logística, mas, mesmo assim, a exposição, no Rio, atraiu 500 mil visitantes", conclui o curador Rodolfo Athayde.ISLÃ: ARTE E CIVILIZAÇÃOCCBB. Rua Álvares Penteado, 112, centro, telefone 3113-3651. 10 h/ 20 h (fecha 2ª). Até 27/3. Grátis. Abertura hoje, às 19h30, para convidados, e amanhã, para o público

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