O gran circo de Fellini

Com '8 1/2', que completa 50 anos e tem cópia lançada em Blu-Ray, cineasta faz de uma crise criativa a sua obra-prima

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
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A obra-prima de Federico Fellini, 8 ½, é lançada em Blu-Ray, com cópia restaurada em alta definição. O selo Versátil acrescenta vários extras, como os depoimentos da atriz Sandra Milo, do fotógrafo Vittorio Storaro e da diretora Lina Wertmüller, além de um documentário sobre o cineasta, produzido pela RAI. É um ótimo material, sem dúvida, mas o melhor, claro, é o filme em si. Assisti-lo, em alta definição, com imagem e som perfeitos, é constatar que, meio século passado, 8 ½ não perdeu nada do seu frescor. Está intacto, talvez até melhor do que quando foi lançado. Há filmes que até melhoram com o tempo, como os grandes vinhos, enquanto outros, brilhantes em seu nascedouro, viram vinagre após dois anos. 8 ½ é um Gran Cru, cada vez melhor sempre que revisito.E por muitos motivos, um deles, em especial. Ao contrário de tantas obras de tese, que envelhecem mal, 8 ½ conserva-se jovem exatamente por isso - não tem nenhuma grande teoria ou causa a defender. Apesar de muito pensado, foi se fazendo à medida do seu progresso, como conta a sua própria trama, aliás. Funciona um pouco como um improviso de jazz. Qual a origem desse projeto? É discutível se Fellini, ele próprio, se encontrava na tal crise criativa ao fazer 8 ½. Vamos admitir que sim, ao menos como hipótese de trabalho. Aos 43 anos, era já um cineasta completamente consagrado, em seu país e no exterior. Assinara algumas obras-primas como A Estrada da Vida (1954) e A Doce Vida (1960). Sem deixar de ser muito pessoal, seus personagens pareciam ainda saídos do neorrealismo como o jovem casal de Abismo de Um Sonho (1952), os amigos provincianos de Os Boas-Vidas (1953), os vigaristas de A Trapaça (1955). Fellini havia sido assistente de Roberto Rossellini. Mas se o primeiro impulso é neorrealista, ele convive sempre com o veio autobiográfico. Moraldo, de Os Boas-Vidas, é o jovem que consegue sair da província e tenta a vida em Roma. É o próprio Fellini, que deixa Rimini e exerce várias profissões na capital. Entre elas, a de jornalista, como Marcello Rubini, personagem de Marcello Mastroianni em A Doce Vida. Será por fim o cineasta em crise, Guido Anselmi, também Mastroianni. Mas se 8 ½ expressa o caos mental de alguém que entra na meia-idade com tudo já conquistado, então é a crise mais criativa que já se viu. Fellini a exorciza afundando-se completamente no que seria essa paradoxal impotência criativa. Guido tenta fazer o seu filme, é assediado por atores e atrizes, pelo pessoal técnico da produção, por sua amante (Sandra Milo), por sua mulher (Anouk Aimée), pelo produtor, por críticos impertinentes. Ao tentar assimilar tantos contrários, Guido evoca cenas de infância. Sonha. E os sonhos se limitam com a realidade por uma parede fina, talvez invisível. Em outras palavras, em 8 ½ Fellini liberta suas fantasias, temores, dores e desejos. Trabalha a forma da obra à medida que o filme progride. Sente-se, na pele, esse frescor da criação, que hesita a cada passo, como à beira do abismo. Ou da paralisia. Lina Wertmüller conta em seu depoimento como Fellini alterava o roteiro e os diálogos da noite para o dia, sem cessar. Os atores nunca sabiam para onde a história se encaminhava e talvez nem o diretor o soubesse. Criava, no dia a dia, no calor da hora. E com uma inspiração visual espetacular, em diálogo preciso com todos os outros elementos da produção. A música por exemplo, era fruto de uma colaboração intensa entre Fellini e Nino Rota. No documentário que faz parte dos extras, Fellini explica a Rota que durante as filmagens usara marchinhas de circo para certas cenas, mas que desejava algo mais para a versão final - músicas que fossem como de um circo imaginário, um circo fantástico e irrealista. Um circo transcendental. A vida, pelo prisma do picadeiro místico, é o que se vê - e se ouve - na ciranda de todos os personagens, em torno dos cenários do filme jamais feito por Guido Anselmi. Como se, no plano imaginário, todos os contrários pudessem se dar as mãos e dançar juntos, da prostituta Saraghina aos padres repressores que fazem a lembrança da infância, do cardeal ao produtor, da mulher à amante. Todos, enfim, unidos no imaginário do artista. Pelo menos por alguns instantes, magníficos. Talvez seja uma das sequências mais tocantes de toda a história do cinema e isso porque coloca em imagens o desejo humano, impossível na vida real, de sintetizar antagonismos e somá-los em vez de escolher um e perder outro. Se havia crise, então 8 1/2 teve ótimo poder curativo. Abriu para Fellini as portas de uma segunda e extraordinária fase, em que todo o memorialismo e o mundo da fantasia se tornaram possíveis em obras como Julieta dos Espíritos,Amarcord, La Nave Va. Arte é liberdade, dizem todos. Mas existem (raras) obras que são práticas de liberdade em sua forma mesma. Liberam nossa mente e nossos sentimentos. 8 1/2 é o protótipo desse tipo de obra libertária, em cinema, como é O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, no âmbito da literatura. Por acaso (mas seria mesmo?) ambas completam 50 anos em 2013. FELLINI 8 1/2 - EDIÇÃOESPECIAL Direção: Federico Fellini (Itália/ 1963, 138 minutos)Elenco: Marcello MastroianniDistribuidora: Versátil Home Vídeo (R$ 59,90)1.São frequentes as passagens entre sonho e realidade em 8 1/2. Os produtores queriam fazer a "realidade" em preto e branco e os sonhos em cor, para os espectadores não se confundirem. Fellini não concordou. 2.A música, como na maioria dos filmes de Fellini, é de Nino Rota. No entanto, ele usa também músicas de compositores clássicos, como Wagner e Rossini. 3.Esta é a segunda das seis colaborações entre Fellini e Mastroianni, eleito alter ego do cineasta. A primeira foi em A Doce Vida. FEDERICO FELLINIDIRETORNascido em Rimini (1920-93), foi um dos grandes do século 20. Filmes como A Estrada da Vida e Amarcord mostram um universo temático e estilístico pessoal. Tornou-se um clássico, sempre contemporâneo.

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