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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O gênio disperso

Leonardo da Vinci, que se foi há 500 anos, lançou sua inquietude em todas as direções

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Atualização:

Em 1519, há meio milênio, faleceu Leonardo da Vinci. A morte do pintor da Monalisa abriu um rombo no Renascimento. O baque foi aumentado, menos de um ano depois, pelo desaparecimento de Rafael. Leonardo atingiu a idade de 67 anos. Rafael faleceu com 37. Restou Michelangelo e seu gênio difícil. O escultor da Pietá chegaria a 88 anos. 

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Com razão a biografia Leonardo da Vinci (editora Intrínseca) está entre as mais vendidas no mundo. Walter Isaacson é um bom pesquisador e o texto tem uma narrativa quase magnética. Muitos especialistas torcem o nariz. Isaacson é jornalista e não um historiador ou especialista em arte. Seus trabalhos anteriores enfatizaram pessoas díspares como Henry Kissinger ou Steve Jobs. O livro Os Inovadores (Cia das Letras) tinha detalhado a atuação de líderes da Revolução Digital. De alguma forma, o autor foi empurrado para pensar o mesmo sobre os séculos 15 e 16. 

Mozart foi construído como o protótipo do gênio precoce com um dom que parecia exigir pouco esforço. Leonardo responde pelo posto de “gênio universal”, um polímata de curiosidade insaciável. É uma surpresa para os leitores do livro de Isaacson a análise dos defeitos expressivos da obra Anunciação (Galeria Uffizi, Florença). Tenho a experiência repetida de levar um grupo para admirar os encantos pela cena descrita no evangelho de Lucas. Depois que todos viveram a experiência estética, começo a indicar os problemas da obra, tantos que houve dúvidas permanentes se seria uma pintura do mestre (outras hipóteses: Ghirlandaio ou Verrocchio?). Se for mesmo obra de Leonardo, indica que gênios também aprendem e podem melhorar. Leonardo era perfectível, não perfeito. 

A República de Florença era um celeiro de talentos. Inteligência parece vir em doses coletivas em alguns momentos da história. Desconfio que a estupidez também. O século 15 italiano, o quattrocento, foi uma explosão de nomes. Havia liberdade criativa, porém, ainda estávamos em uma sociedade marcada por regras. Leonardo sofreu processo na juventude por sodomia, acusação que poderia levá-lo à morte. Foi absolvido por falta de provas ou influência de amigos. Suas futuras relações afetivas ou eróticas seriam mais cuidadosas ou platônicas. Até Freud especulou sobre a sexualidade do pintor. A relação tumultuada de Leonardo com Salai é vivamente descrita na biografia de Isaacson. O inquieto e pouco ético Salai fazia contraponto ao aristocrático Francesco Melzi, devotado ao mestre e herdeiro de muitas das suas obras e escritos. 

Leonardo viveu em Florença, Veneza, Milão e, por fim, seu destino final foi o vale do Loire. O rei Francisco I o venerava. Uma tradição do século 16 (retratada por Ingres no século 19) mostra o soberano segurando a cabeça de Leonardo no momento da sua morte. Talvez o fato nunca tenha ocorrido.

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Da Vinci era inquieto e deixou muitos trabalhos inacabados. A Monalisa é sua obra mais popular e, possivelmente, o quadro mais conhecido da história. Sua sala, no Louvre, eclipsa outras obras-primas no mesmo espaço. O imenso e genial quadro de Veronese, por exemplo, fica em diálogo direto com a pequena obra de Leonardo. Pouca gente dá atenção ao Casamento em Caná. A maioria se aproxima de costas para pegar um bom ângulo para a Monalisa. Teria sido melhor que Napoleão não tivesse roubado o imenso quadro de Paolo Veronese. Os beneditinos de Veneza davam mais valor ao primeiro milagre de Jesus do que às hordas de turistas ao lado do Sena. É raro que a festa de Veronese (quase dez metros de largura) conste no Instagram da viagem média. É obrigatório que a sorridente moça de 77 cm de altura esteja na memória dos celulares. A propósito: obras extraordinárias do próprio Leonardo no Louvre como uma das versões da Virgem dos Rochedos ou A Virgem e o Menino com Santana a poucos metros da Monalisa não atraem tantos selfies. 

A Monalisa é um ícone. Foi roubada em 1911. Poucos anos depois, com a obra já de volta ao Louvre, o dadaísta Marcel Duchamp colocou um bigodinho em uma reprodução e escreveu as iniciais L.H.O.O.Q., significando em francês algo como “ela tem muito calor em uma parte específica do corpo”. O ano era 1919, as cinzas da Grande Guerra ainda fumegavam, havia descrédito imenso com a Razão e, quando Duchamp decidiu atacar um ícone da popularidade artística, só poderia ter escolhido um cartão-postal da Monalisa.

Leonardo se foi há 500 anos. Foi um cientista, um artista, um filósofo, um apaixonado pelo corpo humano e sua anatomia. Lançou sua inquietude em todas as direções. Hoje, provavelmente, alguém daria um pouco de Ritalina para ele. Faltava o foco para levar adiante quadros como o São Jerônimo ou a Adoração dos Magos. Houve um tempo em que gente dispersa fazia obras-primas. Eu vivo no mundo em que os dispersos digitam a esmo pela rua. Amanheci um pouco saudosista dos perturbados que pintam girassóis como Van Gogh e dos violentos que produziam coisas assombrosas como Caravaggio. Houve uma era em que os muito religiosos compunham a Paixão Segundo São Mateus (Bach), gente muito doente esculpia como o Aleijadinho e padres tarados como Vivaldi encantavam os ouvidos de Veneza com sua genialidade. Que os próximos 500 anos sejam bons para a memória de Leonardo da Vinci. Bom domingo para todos nós. 

Opinião por Leandro Karnal
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