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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O fim teatral

A vida de alguém importante é alvo de remodelações constantes

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Atualização:

No dia 30 de maio de 1431, uma fogueira foi acesa em Rouen, na França ocupada por forças inglesas. No centro da praça estava amarrada uma jovem de prováveis dezenove anos, Joana D’Arc, a camponesa analfabeta que provocara uma reviravolta na Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Morria como feiticeira e assim foi condenada pela justiça eclesiástica local a serviço dos ingleses. Seria beatificada em 1909 e canonizada em 1920. A mulher que ardera naquele dia virou padroeira da França e tema de muitos debates nacionalistas. Uma donzela lutando contra ingleses inspirou a República colaboracionista e fascista de Vichy e transmutou-se em símbolo da extrema direita gaulesa atual. Joana é signo aberto.

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A jovem ouvia vozes e era guiada a um desafio gigantesco. Ignorar os impeditivos que o mundo da época impunha às mulheres, aos pobres e aos analfabetos e tornar-se uma líder militar e inspiração para os habitantes da França quase totalmente nas mãos inglesas. Teve a coragem de enfrentar a galhofa da corte francesa acovardada que exibira um falso Delfim para fazer troça dos desejos da adolescente de Domrémy. A morte da libertadora de Órleans e que tivera o prazer de ver a coroação de Carlos VII em Reims foi representada como o fim de uma heroína. Joana foi pintada e esculpida milhares de vezes. Foi tema de filme quando o cinema tinha poucos anos. A cena final é quase sempre a mesma: ela beijando o crucifixo nos seus estertores e olhando para o céu no qual sua fé tinha certeza do ingresso imediato. O dia 30 de maio assinala a morte de uma santa, convicta da sua crença, inabalável devota das suas vozes. Apenas por um breve instante na prisão, ela pareceu vacilar. Tantos homens sábios e com pressões terríveis disseram que ela estava louca ou possuída. Joana chegou a ter dúvidas. A vacilação tinha desaparecido no dia 30 de maio. A donzela morreu convicta, crente, certa de ter feito a vontade do Altíssimo.

Vamos avançar um pouco. Estamos no dia 30 de maio de 1778. Aos 83 anos, o garoto-propaganda do Iluminismo agoniza. Voltaire está no seu instante final. A jovem Joana tinha sido executada 347 anos antes, no mesmo dia em que o filósofo morreu. Ao ser queimada, a camponesa-santa era o símbolo da fé, do nacionalismo e dos valores finais da Idade Média. Voltaire morria bem mais velho, símbolo de outra França, a ilustrada e dos salões, defensor de um modelo de racionalidade e de um novo homem que sacudia as cadeias dogmáticas. Ele fora idolatrado por Catarina da Rússia, admirado e preso por Frederico da Prússia, recolhido por Luís XV para uma pausa na Bastilha, a mesma fortaleza que suas ideias fermentadas e adaptadas ajudariam a derrubar no dia 14 de julho de 1789. 

Voltaire nunca foi, a rigor, um ateu ou sequer um agnóstico. Rejeitou o Deus pessoal da maioria das pessoas e, acima de tudo, atacou com violência a Igreja Católica, tida por ele como “a infame”. Defendeu a tolerância, o uso da razão, um certo modelo de despotismo esclarecido e prosperou com o apoio de nobres, burgueses e monarcas. 

Ele foi tratado pela memória conservadora posterior como o arquétipo do ímpio. Seu sorriso irônico dos bustos foi relido como sarcasmo ferino e destrutivo. Uma narrativa que cresceu no mundo moderno é sobre a agonia final do homem sem fé. Arrependidos na undécima hora, solicitavam sacramentos e a reconciliação com a mãe Igreja. Quase sempre eram fake news. Circulou uma lenda de Voltaire arrependido da vida de “libertino”. A piada apócrifa mais divertida afirma o contrário: quando o padre se aproximou do leito do filósofo e pediu que ele renunciasse a Satanás, Voltaire respondeu que não era a hora mais apropriada para fazer novos inimigos. 

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A morte de um ídolo é o primeiro elemento a ser reconstruído na invenção da memória. A vida de alguém importante é alvo de remodelações constantes. O esforço principia com a narrativa da morte. Joana se debateu em agonia e até injuriou pessoas quando o fogo produziu a dor lancinante? Voltaire teria pedido a comunhão ou o auxílio de um confessor ao apagar das luzes de sua vida? Para a memória da santa e do libertino funcionar, a primeira condição é adequar a morte à vida. Quase sempre a realidade é menos harmônica. 

Há um esforço em guardar as últimas palavras, ou, no caso de Thomas Alva Edison, um tubo de ensaio que conteria o último suspiro do inventor da lâmpada. Sem gravadores à mão para garantir fidedignidade, os homens célebres teriam dito coisas em momentos de tensão do círculo íntimo ao seu redor? Teria Goethe pedido mais luz a 22 de março de 1822, dia da sua morte? Seria a luz da iluminação intelectual ou simplesmente queria que abrissem mais as pesadas cortinas? Teria François Rabelais dito em meio ao delírio final que partia “em busca de um grande talvez” (Je m’en vais chercher un grand peut-être.)? Pergunta incômoda para uma quarta-feira de outono: você já pensou qual será sua frase final ou a que inscreverá na sua lápide? Boa semana para todos nós que temos ainda muitas décadas para pensar nesse detalhe. 

Opinião por Leandro Karnal
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