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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|O fato e o processo

Os especialistas em sexualidade dizem que quanto mais preocupação com a técnica, menos prazer.

Atualização:

Dito isto, vou à minha história.

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O reino de Jurubeba era enorme e, talvez por isso, tivesse o gosto de acasalar opostos. Daí a adoção de um regime republicano em meio a uma semimonarquia. Para muitos, foi um avanço, para outros, um passo em falso. Como conciliar ideais monárquicos com valores republicanos? Estes queriam distribuir renda pela necessidade e pelo mérito, aqueles pelo mérito e pela necessidade. O novo regime tinha afeição pela ambiguidade, sempre resolvida com muito formalismo jurídico e bate-boca. 

Um dia, ficaram sabendo que a mais fina realeza jurubebiana era traidora. Em público, a nobreza dominante dizia ser contra Corrupção, um reino inimigo, pequeno, mas forte, que fazia a fronteira esquerda com Jurubeba. Mas, na intimidade, traía-se o reino e barões e duques eram vistos recebendo e dando o que Jurubeba chamava de pixuleco.

Apurou-se que era tudo verdade! 

Agentes secretos de Corrupção infiltraram-se em Jurubeba, disseminando o roubo e a traição. Desonravam-se títulos imortais de nobreza pelas propinas que compravam um “green card”, ao passo que bilhões de pixulecos davam plena cidadania em Corrupção. 

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Muitos nobres de Jurubeba eram canalhas, mas protegidos por velhos privilégios de casta. E como os privilégios impediam condenações drásticas, o Direito era uma matéria básica em Jurubeba. De fato, num reino onde tudo, até o real, era regulado e poderia ser criado e corrigido por lei, todos – de sapateiros aos sacro magistrados do Tribunal de Suplicação – entendiam de regimentos, constituições, códigos e regras. Mas, mesmo assim e talvez por isso mesmo, todo dia alguém era acusado de grave delito.

Passado, entretanto, o susto da denúncia, as coisas voltavam ao normal e a casta dos acusados e delinquentes tornava-se a maior, a mais poderosa e a mais escandalosa do reino.

Alguns diziam que, para ser uma democracia, o reino de Jurubeba tinha que mudar suas atitudes aristocráticas, mas os ladrões e traidores achavam que ser uma república com procedimentos e hábitos monarquistas era normal e até mesmo ideal. Enquanto isso, Corrupção criava seus adeptos e ampliava sua lista de quintas-colunas.

Traição e ladroagem em alta escala, ao lado de um rei grosseiro e incompetente, incapaz de falar porque era mais gago do que o George da Inglaterra, culminaram com os escândalos do lamaçal das minas. 

A vida estava dura. A cada manhã anunciava-se um novo crime; mas cada delito tinha o seu processo legal de modo que tudo continuava na mesma. O ritual sagrado e longo neutralizava o crime e este procedimento engendrava novas acrobacias legais. Um dado juiz, que se meteu a romper com essa lógica, foi tido como traidor pela nobreza republicana da terra. As batalhas jurídicas imobilizaram o reino, preso por suas próprias leis e valores – todos legais e ilegais ao mesmo tempo.

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Foi nesse contexto que, depois de instigar traições, Corrupção declarou guerra e, ato contínuo, invadiu Jurubeba. 

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Diante da violência, o governo reagiu. Uma declaração de guerra era urgente. Mas entre a guerra (o fato) e a ação, havia o danado do processo legal, que havia de ser impecável. Instalou-se um sério e denso debate sobre como seria a declaração. Depois de muito deliberar, a Suprema Corte anunciou as condições para tal rito. Ei-las:

Determinava-se a formação de uma Comissão de Guerra de 1.000 membros para investigar se havia mesmo uma guerra. Dava-se um prazo de 30 dias para uma pré-declaração ser avaliada pelo Real Conselho de Guerra o qual, em terceiro lugar, teria o poder de rejeitá-la o que, aliás, ocorreu com base num antigo decreto inspirado nas guerras Púnicas e bem lembrado pelo mais culto membro do Sacro Conselho Supremo, o qual só se comunicava em latim. E, finalmente, seria preciso uma consulta popular para que todo reino manifestasse sua vontade soberana!

O procedimento estava em debate quando Jurubeba se rendeu ao solerte inimigo. Muitos nobres, acusados de ser “reais realistas”, disseram que foi bom por que, afinal, Corrupção já era mesmo a potência dominante. Outros choraram de indignação. Mas poucos, muitos poucos, atinaram que a pátria fora morta pelo processo. 

Isso ocorreu num Natal. 

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* PS: Qualquer semelhança desta fábula com algum grupo ou pessoas, vivas, semivivas, sonâmbulas ou mortas, é mera coincidência. Feliz Natal, amados leitores que fazem o cronista.  

Opinião por Roberto DaMatta
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