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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O exercício da humildade

Pensamos a humildade em conjunto com a vaidade, a soberba, o narciso exaltado

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Atualização:

Humildade é virtude louvada por filósofos, teólogos e moralistas. Aparece em elevados tratados e nos conselhos do dia a dia. Há poucas unanimidades no mundo, a necessidade de ser humilde é uma delas.

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Pensamos a humildade em conjunto com a vaidade, a soberba, o narciso exaltado. De novo, o universo clama: vaidade atrapalha a estratégia e cria embaraços ao desenvolvimento e progresso profissional e pessoal. Ninguém tolera um pavão com sua cauda exuberante e cromática no escritório ou na família. Não escutam, falam das suas conquistas sem cessar e olham com a arrogância de quem contempla a planície da humanidade do pico do Everest. Sabem tudo e fazem mais do que todos. Você foi até Moscou em viagem com a família? O soberbo fez a Transiberiana. Conheceu Agra e o Taj Mahal? Ele passou um mês no norte do Nepal. Você sofre de terrível enxaqueca? O vaidoso tem um tumor cerebral. Não existe chance: ele é mais no plano real ou fantasioso, na alegria e na tristeza. 

Dialogo muito com minha vaidade. Sempre considerei que o orgulho é uma maneira de adestrá-la: por não querer passar vergonha diante dos outros, eu controlo os excessos da minha vontade de me exibir. O que seria isso? Muitos moralistas diriam que devemos ser humildes, tocar o húmus do solo que vivifica. Você não deveria querer impressionar sempre porque isso desvia o foco da virtude e do crescimento da sabedoria. Isso é virtuoso e verdadeiro. Porém, eu dou conselho mais profano: evite exibir todas as qualidades ou mostrar-se muito bom em muitas. Por quê? Porque ninguém é muito bom em muitas coisas e a exibição produz um ídolo de pés de barro e pode fazer ruir a imagem que a empáfia pretende. Em outras palavras, ser vaidoso a ponto de controlar sua vaidade para que ela não seja arranhada pelas suas lacunas ou pelo ódio do grupo. Vaidade é estratégia contra soberba, afinal, como garante o Eclesiastes, nada existe fora dela: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.

Os deuses gregos puniam vaidosos como Aracne que concorreu com Palas-Atena e foi castigada virando aranha. A orgulhosa Níobe ousou proclamar que gerara mais filhos do que Leto. Erro fatal: a divina mãe mandou seus dois filhos matarem a flechadas os rebentos da imprudente. Todavia, os deuses têm vaga misericórdia e a mãe inconsolável foi transformada em rocha que ainda verte lágrimas na forma de cascata.

No livro do profeta Samuel, surge uma figura vaidosíssima: Absalão, filho do rei Davi. O jovem, apesar de o nome significar “meu pai é paz”, vivia às turras com o progenitor. Absalão era o mais lindo de todos os homens e não havia defeito nele da cabeça aos pés. O ponto central do narciso do príncipe? Seu cabelo. Quando ele o cortava para evitar o excesso de peso, o total atingia duzentos siclos, algo próximo a três quilos. Isso é muito? Não sei, minha área não envolve densos conhecimentos capilares. 

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Pelo cabelo orgulhou-se e pelo cabelo morreu o irmão de Salomão. Fugindo em meio a sua rebelião contra o rei seu pai, sua afamada cabeleira embaraçou-se em um galho de carvalho e ali foi alvejado. O peixe morre pela boca e Absalão pereceu pelo cabelo. Já vimos que exaltar-se irrita seres celestes e terrenos. Socialmente convivemos mal com a vaidade alheia porque fere a nossa. Nada mais insuportável do que esse espelho. Nunca conheci uma pessoa verdadeiramente humilde, todavia, claro, há escalas enormes entre quem controla e quem não controla sua vaidade. 

Uma pessoa realmente humilde talvez tenha obstáculos para o sucesso, contrariando a sabedoria popular. Homens de liderança como Churchill e Napoleão eram, segundo renomados biógrafos, vaidosos de forma quase doentia. Mesmo assim, negociaram muitas vezes com outros e com as circunstâncias. A chave do sucesso do inglês foi ter mudado muito desde a Primeira Guerra até sua atuação como primeiro-ministro na Segunda. Napoleão lidava com feridas narcísicas (ou espinhos na carne como diria Paulo de Tarso): era baixo, de nobreza duvidosíssima e um “estrangeiro”. Napoleão tinha muita segurança para negociar com famílias seculares como a do czar ou do imperador austríaco. Como encarar o nariz empinado de casas reais históricas? Quase sempre baseado em uma profunda e densa vaidade.

Segredo de polichinelo: você não pode exibir sua vaidade e não pode prescindir dela. Você precisa controlá-la. Querem uma aula de estratégia sobre a vaidade? Jesus a dá em Lucas 14. Quando chegar a uma festa, não se sente à cabeceira da mesa porque o dono pode pedir para você ir para um lugar menos destacado. Escolha o lugar menos honroso para que o dono vendo você lá no fundo diga que avance. O que é isso senão usar da retórica humilde para conseguir um efeito cenográfico de engrandecimento? Bem-aventurados os humildes que conseguem ocultar a sua imensa vaidade sob o manto do orgulho estratégico. É preciso ter esperança. 

Opinião por Leandro Karnal
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