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O eterno reescrevedor

Perdoe o tom sentencioso, mas acho que cada um de nós tem na vida um ou dois encontros realmente decisivos – e um dos meus foi com Murilo Rubião, grande contista e extraordinária figura que neste 1.º de junho faria 100 anos.

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Chegou como surpresa, pois, para o adolescente com fumaças literárias que fui, Murilo era um enigma. Podia até não existir.

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Pelo menos, não era reconhecível entre os personagens do Encontro Marcado de Fernando Sabino, o romance, quase escrevo bíblia, que o meu grupinho gostaria de arremedar na vida e na literatura. Não se tinha notícia de Murilo escalando, como Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, os arcos do viaduto de Santa Teresa. Nem tocando fogo em casa de família para ver beldades de camisola saindo esbaforidas, como fizeram Drummond e Pedro Nava certa madrugada dos anos 1920.

Só tive a confirmação de que Murilo existia quando topei com um exemplar de O Ex-Mágico, lançado em 1947. Depois soube que era autor, também, de A Estrela Vermelha, plaquette com 4 contos e apenas 116 exemplares.

Murilo Rubião estava inteiramente desemparelhado na ficção brasileira – e mesmo na ficção continental, pois na literatura latino-americana não sobreviera ainda o boom do realismo mágico. Relatos fantásticos como Cem Anos de Solidão, com personagens capazes de literalmente voar, ainda estavam por escrever. Para desconforto dos críticos que amam organizar autores em times, não havia por aqui um escritor “tipo Murilo Rubião”. Chega a ser impressionante que o moço tenha resistido à tentação de abandonar sua picada erma.

Em papel impresso e até em carne e osso – pois passara longa temporada na Espanha –, ele voltou à circulação em 1965, com Os Dragões e Outros Contos. Tinha quase 50 anos, mas podia dar aos desavisados a impressão de ser um estreante.

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Ninguém soubera até então avaliar devidamente a arte de Murilo, cujo nome se perdia na vala comum do vasto et cetera da ficção nacional contemporânea. Nem mesmo as antenas agudíssimas de Mário de Andrade, com quem ele se correspondeu entre 1939 e 1944. “Mário gostava do autor”, me contou Murilo sem ressentimento, “e fazia o possível para gostar da obra...” Antonio Candido leu Os Dragões em 1965 e, numa carta, penitenciou-se por não haver, 18 anos antes, registrado condignamente a chegada de O Ex-Mágico.

Foi Candido quem, a partir daquele momento, chamou atenção para a importância do escritor mineiro. Em 1974, o editor Jiro Takahashi, da Ática, teve trabalho em convencer Murilo de que uma edição comercial de seus contos não encalharia. No mesmo ano saiu O Pirotécnico Zacarias, com 30 mil exemplares, marca que não tardou a bater nos 100 mil.

Conheci Murilo bem antes disso, em 1965, quando foi jurado de um concurso de contos que me premiou. Já não me lembro do valor do cheque que recebi das mãos de Alceu Amoroso Lima, mas sempre considerei como maior prêmio meu exemplar autografado de Os Dragões. E me senti importantíssimo quando, em 1966, Murilo me convidou para colaborar no suplemento literário que acabara de criar como encarte semanal do Minas Gerais, o diário oficial mineiro. Em 1968, levou-me para trabalhar com ele, com isso abrindo para mim, de quebra, a alternativa profissional do jornalismo.

Olhando para trás, devo admitir que, na apoteose mental de meus 20 anos, fui tomado pelo que chamo de vertigem de sobreloja. E ainda me espanto e me emociono com a imerecida corda que Murilo dava ao petulante aprendiz de tudo. Sinto enorme vergonha retroativa ao me lembrar da sem-cerimônia com que tomava ao pé da letra os pedidos para palpitar nos contos dele, Murilo Rubião. Histórias recém-saídas do forno, como Os Comensais ou Petúnia, e versões retrabalhadas de outras não inéditas, pois Murilo menos escreveu do que reescreveu. Quem mais levaria 26 anos ruminando as poucas páginas de O Convidado? O verbo era “murilar”, dizia eu da obsessão desse burilador impenitente. Em 75 anos de vida, publicou 51 histórias, das quais descartou 18. Toda a sua obra consiste, pois, em 33 contos, magro volume no entanto capaz de parar de pé com mais aprumo do que muita obra caudalosa.

Um dia, Murilo me pediu opinião sobre mexidas que dera em O Ex-Mágico, conto nascido antes de mim. Sentei-me a seu lado e fui em frente, seguríssimo de mim como nunca mais na vida. Do alto da minha sobreloja literária, lá pelas tantas impliquei com o substantivo “despautério”. Achava que a literatura se fazia com belas palavras. “Não dá, Murilo!”, pontifiquei.

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Na morte do escritor, em 1991, lembrei-me do episódio – e não tive coragem de conferir na versão definitiva de O Ex-Mágico. Tempos depois, contei a história ao repórter Marcus Assunção – e ele, tendo corrido ao conto, fez a maldade de informar que a palavra fora cortada. Sem Murilo, já não havia como remediar meu despautério.

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