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O escambo & o escambau

Lembranças de uma cidade, Havana, onde se troca qualquer coisa por uma coisa qualquer

Por Humberto Werneck
Atualização:

Caminhava eu pelo bairro do Vedado, em Havana, em meio a um emaranhado de letras e algarismos (quase toda rua, ali, tem por nome alguma consoante, vogal ou número) quando, ao virar uma esquina -

“Não, não pode ser!”

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Era impossível que existisse, na capital de Cuba, camiseta igual àquela, verde profundo, com uma estampa abstrata em negro no peito. Mesmo em São Paulo, onde a comprara, jamais topei com uma semelhante. 

O portador do “pulóver”, como se diz em Cuba, vinha na outra direção; quando chegou a um metro de mim, não tive dúvida: era ela.

Sim, a camiseta que, ano e meio antes, eu tinha dado a um amigo havanês, tão fascinado se mostrara ele. Hesitei. Mas não havia como resistir a elogios tão pedintes, no limite da mendicância, qual ciganas de mão estendida e bebê no colo às portas da Alhambra, em Granada, Espanha. Acabei cedendo. Tudo bem, que se vá a minha camiseta ímpar, na verdade sem nada de especial. Se esse camarada vestir a camisa da Revolução com o ardor desejante que acaba de demonstrar, pensei, Fidel não cai tão cedo.

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Foi na segunda metade da década de 80, quando os cubanos viviam sob o guarda-chuva pródigo da União Soviética, cuja derrocada, poucos anos depois, ninguém àquela altura parecia imaginar. O país seguia quase integralmente fechado ao turismo. Com exceção das diplotiendas, lojas às quais os nativos não tinham acesso, pois ali só se comprava em dólar, moeda para eles proibida, o rarefeito comércio de Havana se resumia a produtos provenientes da Europa Oriental, aparentemente desenhados por burocratas escolhidos em função de sua inabilidade e mau gosto. Os mal-ajambrados pitusas (jeans) ali encontráveis me davam a impressão de terem sido confeccionados com tecidos sintéticos capazes de enfrentar os rigores da neve siberiana, desses que derrotaram Napoleão e Hitler, mas radicalmente inadequados para o sol do Caribe, que parece arder até mesmo quando é noite.

Era de prever que meu amigo, recém-embalado na minha camiseta capitalista, não demorasse a trocá-la, logo adiante, por alguma coisa, nem que fossem uns anêmicos pesos cubanos. Vinda de fora, qualquer insignificância assumia em Cuba valor desproporcional. 

Exemplo? Uma revista italiana Uomo, comprada no aeroporto de Guarulhos, numa das muitas viagens que fiz à ilha, na década de 80. Ao desembarcar na terra da guayabera com uma publicação de moda europeia, eu não tinha o propósito de embasbacar os anfitriões, como fez o português Caramuru ante os índios, com seu bacamarte e sua cuia de aguardente; no entanto, era previsível que a revista causaria sensação. 

Não deu outra. Na visita seguinte, um ano mais tarde, os camaradas me levaram para conhecer amigos deles - e o que vi, em estado de molambo, na mesinha de centro? A revista ali estava, me contaram, depois de circular por meia dúzia de endereços, a cada passo trocada por alguma coisa. Já pensou se fosse uma Playboy? Mais sucesso que meu exemplar de Uomo, só a lata de castanhas de caju trazida do free shop brasileiro. Ninguém, na roda, conhecia pessoalmente o que lá chama marañon.

A lembrança me veio a propósito do filme Últimos Dias em Havana, que vi no fim de semana. Faz muitos anos que não vou a Cuba, e ando curioso por saber como vão ali as coisas, aquelas que realmente contam, as chamadas miudezas do cotidiano. Nas beiradas da ótima história, não vi um panorama muito diferente do que pudera conhecer em numerosas visitas. Só me faltou topar, num fundo de cena, com um estranho vestindo a minha camiseta, ou folheando uma desmilinguida edição da Uomo, ou mãos ávidas congestionando a boca de uma lata de marañon, habitada agora, quem sabe, por grãos de mani, o nosso amendoim. É possível que vigore ainda em Cuba o frenético sistema de escambo que até hoje me impressiona. Nas vezes em que lá estive, trocava-se de tudo por qualquer coisa. De olhos postos na miragem do Milênio Socialista, o Estado fazia vista grossa para o desenfreado troca-troca. 

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Parecia coisa institucionalizada, por exemplo, a atividade de uns tantos corretores de permuta imobiliária no Paseo de Martí, onde qualquer cidadão, mediante o desembolso de 5 pesos, se inscrevia para mudar de moradia. A lei proibia compra e venda de imóveis? Dava-se um jeito. Um casarão no subúrbio, derruído mas amplo, poderia ser cambiado por um apartamento, microscópico porém situado no Centro Habana ou na Habana Vieja, quem sabe no Vedado.

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E havia, ainda mais alucinadas, as permutas de qualquer coisa. O escambo e o escambau. Em 1994, quando voltei a Cuba para uma reportagem, encontrei a ilha de Fidel, já sem os dólares da finada União Soviética, chafurdada no pântano a que os burocratas deram o nome de Período Especial em Tempo de Paz. Naquele quadro de penúria unânime, tive notícia de gente trocando carneiro por liquidificador e máquina de lavar por pitusa. Um sabonete por 30 ovos. Uma barra de sabão valia ½ quilo de café, 2,5 de arroz, 2 de feijão ou 3 garrafas de purê de tomate. 

Um porco de bom tamanho era trocado por uma bicicleta. Suíno que, em muitos casos, terá sido criado nos altos de algum apartamento, em estreita coabitação com a família que o fez engordar. Você talvez se lembre de uma cena de Morango e Chocolate em que um porco é empurrado escada acima num cortiço havanês. É provável que, em seguida, lhe tenham cortado as cordas vocais, para não incomodar os vizinhos e atrair polícia. Duvida? Então veja Adoráveis Mentiras.

Sedentário, flácido, o chamado “porco de Havana” não alcançava o preço dos convencionais, esses afortunados que ronronam no rés do chão. Ainda assim, tinha boa cotação no mercado informal dos cubanos. Soube de famílias que a eles se afeiçoavam como a um pet, poupando-os da faca. Como, porém, a roda viva do escambo não pode parar, não é impossível que neste momento, em Havana, algum leitão esteja peregrinando de apartamento em apartamento, como um ensebado exemplar da revista Uomo.

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