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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|O entretanto, o talvez e o porém

Dúvida – essa dimensão indispensável ao poder, à escolha e ao arbítrio

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Atualização:

Permitam ao cronista, que não gosta muito deste “vale de lágrimas”, que ele escreva sobre esse lugar onde entramos sem saber ou pedir e, nele vivendo, tentamos evitar fatos alarmantes e inesperados. Exceto – e eu peço perdão se ofendo algum leitor – quando encontramos o prazer físico conjugado e afim ao “vale de lágrimas”, mas que nem sempre junta o gozo corporal com um difícil de definir “bem-querer”, classificado como “amor” mutuamente consentido e certamente ambíguo por ser irônico, conforme cantam poetas e malandros sedutores de todos os quilates, em todos os tempos. O meu favorito, o velho Luís de Camões, caolho na visão, aberto no coração, escreveu: Amor é fogo que arde sem se ver / É ferida que dói, e não se sente / É um contentamento descontente / É dor que desatina sem doer. Relembro aqui a abertura e o seu final: Mas como causar pode seu favor / Nos corações humanos amizade, / Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Camões se tornou um sinônimo de perfeição e amor pela poesia em língua portuguesa Foto: Real Gabinete Português

* No final da estrofe, aparece o humano: o “entretanto” e o “porém”. As dúvidas inerentes à liberdade que, como o amor, são tão fáceis de teorizar e tão difíceis de guiar o nosso oscilante movimento humano, marcado justamente por projetos, palpites, desejos, planos e escolhas nem sempre coerentes. Essas escolhas que são nossas, aquilo que é contrário a si mesmo como amor... Os animais têm escolhas. Mas lembrem-se de que um elefante não come carne e um leão devora um pedaço de búfalo cru! Nós, entretanto, comemos cozido e existem tantas formas de preparar uma carne quanto os canais de TV que assinamos. Somos criaturas do “entretanto”, do “porém” e do “todavia”. Se sobreviver é básico, esse básico é sempre qualificado por alguma forma de dúvida – essa dimensão indispensável ao poder, à escolha e ao arbítrio. Essa poeira da qual somos feitos, justamente porque em todos níveis existe os entretantos, o porém e os entrementes inerentes a todas as escolhas. * Nestes tragicômicos tempos pré-eleitorais, nos quais podem “cair” os de “cima” e “subir” os de “baixo”, batemos de frente com esse diáfano espaço da dúvida que é o apanágio de nossas liberdades cívicas. Elas foram inventadas para dirimir dúvidas. Mas no caso desta gloriosa eleição, todavia e entretanto, há um elemento inusitado: a repetição que, como água benta, exorciza a dúvida e afiança que, mudando, seremos sempre o que gostamos de ser – os mesmos. 

Opinião por Roberto DaMatta
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