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O disco coletivo mais importante da história do País

Por Lucas Nobile
Atualização:

O Ato Institucional n.º5 fora decretado e a mão pesada do regime militar corria solta, portanto, o cenário para os para artistas brasileiros não era nada amistoso no ano de 1968. Com muitos deles escapando pela fronteira em busca de liberdade e tantos outros sendo "exilados" pelo governo, os que decidiam ficar tinham seu ofício engessado pela censura. Em meio a malabarismos na busca por um clima mais favorável à criação, um grupo de artistas decidiu se reunir para fazer nada mais nada menos que o disco coletivo mais importante da história do País.Apesar de tudo, a efervescência cultural daquele período explodia. Em 1966, Chico Buarque havia despontado com A Banda. No ano seguinte, foi a vez de um Edu Lobo avassalador vencer o festival com Ponteio (parceria com Capinan), com Marília Medalha e o Quarteto Novo, derrotando Domingo no Parque, de Gilberto Gil, e Alegria, Alegria, de Caetano Veloso.Eis que quando se pensava que a música popular brasileira já tinha o timão de sua embarcação estabilizado para navegar em calmaria e comodismo, foi lançado Tropicália ou Panis et Circenses, disco-manifesto que deflagrou o movimento e a estética tropicalistas.Com a produção competentíssima do importante Manuel Barenbeim e arranjos extremamente bem cuidados de Rogério Duprat, o time formado por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Os Mutantes, Gal Costa, Tom Zé e Nara Leão atirou no ventilador que sopraria doze composições malucas e completamente diferentes em relação ao que se produzia na época.O álbum foi uma espécie de divisor de águas e de patotas naquele período. De maneira absolutamente maniqueísta - e banal - estipulou-se que a partir daquele disco determinado o artista estava do lado do tropicalismo, sendo rotulado como moderno, ousado e revolucionário, ou estava do outro, ganhando a pecha de conservador, atrasado e até mesmo alienado por querer cantar apenas canções "água com açúcar", como se fazia até o início da década de 1960 com a bossa nova.Com arranjos para naipe de metais e coros encorpados, o disco criava uma atmosfera inebriante não só para aquele momento, mas até hoje. Sem contar que ao elenco de intérpretes de primeira linhagem cabia dar voz a temas de compositores do quilate de José Carlos Capinan, Torquato Neto, João de Barro e, obviamente, de Caetano, Gil e Tom Zé.Estudado até hoje, com toda justiça, como referência musical, Tropicália ou Panis et Circenses era como, por meio de metáforas, alegorias, conotações e entrelinhas, aquele grupo de musicistas geniais mostrava o jeito de fincar pé para retomar o País que parecia lhe escapar por entre os dedos.O que chocava também, além da qualidade indiscutível das canções, era como elas podiam ser tão diferentes entre si, apresentando ao ouvinte um relevo de picos e vales emotivos.Além de temas antológicos que hão de perdurar para sempre nas enciclopédias da música popular nacional, como Panis et Circenses, de Gil e Caetano, consagrada pelos Mutantes, Bat Macumba, dos mesmos compositores baianos, e Baby, só de Caetano, na doce voz de Gal, o disco ainda conta com uma série de faixas menos lembradas, mas que ajudaram a formar todo o mosaico imprevisível do tropicalismo, como Misere Nobis (Gil), Coração Materno, Enquanto Seu Lobo Não Vem, Lindoneia (Caetano), a última, na bela interpretação de Nara, e a maluca, arriscada e provocante Parque Industrial, de um gênio completo chamado Tom Zé. Tropicália é o retrato de uma época politicamente obscura e culturalmente brilhante, com artistas que tinham como norte impregnar sua música de sentimento.

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