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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|O dilema do herdeiro universal

Atualização:

Luis Ernesto ligou para um amigo Roberto:- O que é herdeiro universal?- Herdeiro universal? Por que deseja saber isso? De onde tirou? É uma expressão jurídica.- Recebi uma carta dizendo que sou herdeiro universal.- De quem?- Não conheço a pessoa. Não entendi direito, é difícil de ler.- Deve ser linguagem jurídica. Não é fácil mesmo.Luis Ernesto parecia inquieto. Não entendia os termos, não conhecia nenhuma pessoa com aquele nome que assinava a carta. Tinha ligado para Roberto porque este era o mais inteligente de seus amigos, tinha estudado na universidade. Barbeiro, Luis Ernesto cortava os cabelos de Roberto, um homem metódico, mensalmente no mesmo dia e hora.- Será que vou ser preso?- Não, nada disso. Herdeiro universal é coisa boa. Quer dizer, pelo que sei, você vai herdar alguma coisa de alguém que gostou de você e deixou um testamento te beneficiando.- Então, não é ruim?- Claro que não. Pode ser que você vá receber uma casa, dinheiro, terreno, um carro, um sítio, tanta coisa.- Como se fosse Mega Sena?- Nem tanto. Mas nunca se sabe. Fique calmo, pode ser uma bela notícia.Roberto tinha uma reunião com o conselho da Unesp, precisou desligar, mas combinou que, assim que tivesse um tempo livre, leria a carta, conversaria com um advogado amigo, o Sidney Sanchez, pessoa categorizada, que gostaria de ter uma ação em que pensar, uma complicação para desembaraçar. No entanto, a vida social nesta cidade é agitada, são almoços, happy hours, esquiar na represa, jogar tênis no clube, jantares variados, assistir a show no Sesc, participar de uma manifestação de rua, irritar-se no trânsito haddadiano (quer dizer, paralisado), enfim... grande e diverso é o mundo... Assim, Roberto acabou se esquecendo do herdeiro universal. Até que chamou o barbeiro para cortar o cabelo, porque Roberto é requintado, é atendido em casa. Somente quando Luis Ernesto entrou com um envelope nas mãos é que Roberto se lembrou. O barbeiro estendeu a carta:- Antes de cortar, doutor Roberto, o senhor me leia a carta.- Claro, era sobre isso que ia falar, consultei amigos, precisava do documento.Roberto leu e à medida que lia empalidecia. Terminou e tremia. Luis Ernesto percebeu, ficou preocupado.- É muito ruim, doutor?- Não! É bom. Mas é muita responsabilidade. - Grave assim?- Muito! Demais! Nem imagina quanto é complicado.- Responsabilidade? O que aconteceu?- Você acabou de ser herdeiro universal do mundo.- Do mundo?- Do mundo, da Terra, de tudo.- Do Brasil...?- Do Brasil e de todos os países, dos oceanos, povos, de tudo. Tudo será seu!- Tudo? As ilhas também. Meu sonho é conhecer uma ilha! Mas, isso é bom ou ruim?- É complicado, você precisa pensar muito, pedir ajuda.- E o que o senhor acha que devo fazer? Aceitar? - Quer uma opinião sincera?- Claro, é tudo o que quero.- Aceite. Aceite, pegue. E jogue tudo fora. Fará um bem para a humanidade.- Jogar fora o mundo? Por quê?- O mundo está violento, medíocre, rançoso, cheio de medo, de ódio, ultrapassado, avariado, degradado, decadente, bichado, embolorado, mofado, enferrujado, oxidado, apodrecido, carunchado, desnaturado, fazendo água, deteriorado, podre, fétido, decomposto, corrupto, fodido.- E o que faço? É uma batata quente nas minhas mãos.- Caia fora! Mas me avise quando pretender se desfazer dele.- Posso telefonar, fique tranquilo.- Porque vou te pegar para seguirmos o conselho daquela antiga canção: "Pare o mundo que vamos pular fora".

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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