O dia em que Killoffer viu dentro de si mesmo

Francês fala ao Estado sobre álbum que deixou boquiaberta a Rio Comicon

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Por Jotabê Medeiros
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Patrice Killoffer é implacável consigo mesmo - e, por tabela, com a gente. "É um autor autorreferente e egocêntrico, concentrado em sua própria decadência, seu caráter duvidoso e seus desejos destrutivos", escreveu o cartunista Rafael Coutinho, a respeito do colega.Lançado no Rio de Janeiro no ano passado, durante a feira Rio Comicon, a graphic novel experimental 676 Aparições de Killoffer ganha agora sua tradução brasileira, lançamento da LeYa Cult e Barba Negra. É obra-mestra do cartunista francês, de deixar babando a própria classe de desenhistas. "É uma das sequências de páginas mais lindas que já vi", disse Rafael Grampá. Killoffer falou ao Estado com exclusividade sobre seu trabalho.Um colega definiu seu novo álbum como uma espécie de A Metamorfose, de Kafka, dos quadrinhos. É a história do cara que acorda um dia transformado num monstruoso inseto. No seu livro, os pratos sujos que você esquece em Paris agem como o deflagrador do mesmo processo. O que pensa disso?Na Metamorfose, Kafka busca, me parece, abordar a questão das relações sociais e familiares. A monstruosidade do narrador serve para demonstrar o absurdo das relações que ele mantinha com seus próximos. Em 676 Aparições de Killoffer, vê-se o caso das relações de Killoffer com Killoffer, mesmo se os avatares possuem algo de monstruoso. É a monstruosidade própria ao Killoffer que deixa a dúvida.Você já esteve no Brasil, para palestras, em lugares como João Pessoa, na Paraíba. Qual sua visão de nosso País?O Brasil me apareceu como uma mensagem de esperança. Senti lá uma grande energia, um otimismo. Um país dos possíveis. Como um mundo em miniatura, que contém todo o planeta, tudo o que faz a Terra está presente no Brasil, como uma maquete do mundo onde se vai de antemão com alegria. O Ocidente envelhece, a China não é engraçada, os países árabes carregam frustrações demais. Talvez haveria esperança desse lado, depois dos recentes acontecimentos na Tunísia?...No álbum 676 Aparições, você usa as palavras com um efeito gráfico, evoluindo do texto para os desenhos. Há um filme sobre o cartunista Robert Crumb, dirigido por Terry Zwigoff, que mostra o irmão mais velho de Crumb, Charlie, fazendo o desenho se dissolver nas palavras. Ele era esquizofrênico. Você viu o filme? Sim, eu conheço o filme. Espero não ter tanta semelhança com esse irmão de Robert Crumb... Acho que todas as produções humanas têm a ver, claro, com a psicologia humana. Os quadrinhos aí incluídos. Em meu livro, se o texto para em um dado momento, é que eu não tinha mais nada a dizer dessa forma. O desenho continua o resto. Não tinha vontade de dizer mais uma vez o que eu já havia dito nas primeiras páginas do livro, apenas por preocupação com a coerência. Quando o texto não é necessário, ele deve se calar. O texto, aqui, funciona como uma apresentação das questões que o livro aborda. Uma exposição das problemáticas abordadas. Em seguida, o desenho é suficiente por ele só. O que eu busco atingir é, sobretudo, a liberdade.A dedicatória de seu livro é para você mesmo, por conta do ponto de partida autobiográfico. Qual a razão pela qual você olha mais para dentro de si mesmo do que para o lado de fora?A dedicatória busca, sobretudo, ser engraçada. Não é preciso levá-la a sério. Tinha começado esse livro com a ideia de fazer uma espécie de diário de viagens, uma reportagem. E depois isso me entediou. Não via interesse pelo enésimo livro autobiográfico a mais no mundo. Na verdade, a repugnância pela autobiografia foi o que levou a esse resultado. Talvez seja um livro que diz: "O interior deve permanecer no interior; a saída para o exterior é nojenta".Gostaria de saber quem são seus mestres. Art Spiegelman está entre as experiências que você admira?Sim, Spiegelman certamente. Muitos outros também. Acho que eu não sou o mais indicado para dizer quais seriam as minhas influências. É uma questão para a qual sempre encontrei outros que respondem bem melhor que eu. 676 APARIÇÕES DE KILLOFFER Autor: Patrice Killoffer. Editora: LeYa (48 páginas, R$ 39,30).

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