O dia-a-dia dos empresários de farol chega aos palcos

Em A Vida Que Eu Pedi, Adeus, um casal de desempregados passa a agenciar crianças para vender balas na rua

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Por Beth Néspoli
Atualização:

Fórmulas dificilmente funcionam bem em teatro, mas quem faz humor sabe que há alguns recursos quase certeiros. Homem vestido de mulher, por exemplo, provoca risos. Obesidade, má aparência, os trejeitos do afetado são elementos explorados ao esgotamento, porque é sempre mais fácil fazer rir dos outros. Porém é preciso burilar muito para criar a boa comédia de situação, aquela em que pessoas "normais", como as que estão na plateia, tornam-se cômicas porque a realidade as obriga a agir de forma patética, e sem se darem conta.

 

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Essa qualidade tem a comédia A Vida Que Eu Pedi, Adeus, de Sérgio Roveri, que estreia hoje no Teatro Cosipa Cultura, com direção da cineasta Eliane Caffé. O público vai rir do comportamento e das tiradas do casal Armando e Eurides muito bem interpretados por Ailton Graça e Vera Mancini, a julgar pelo ensaio acompanhado pelo Estado. Mas tal comicidade se apoia numa realidade que afeta o espectador diretamente.

 

É trágica a forma que escolheram para sobreviver depois de dez anos de desemprego: agenciam crianças para vender balas no farol de uma avenida. Mas é cômico o tratamento que o autor dá a essa situação, porque eles se sentem empresários e reproduzem em escala menor e de forma canhestra jargões e atitudes do mundo do trabalho contemporâneo, em que a exploração pura e simples chega disfarçada de terceirização e estímulo ao espírito empreendedor.

 

"Eu ando pela periferia e conheço gente que vive nesse mesmo limite de sobrevivência. Armando e Eurides têm sua ética, não admitem o tráfico de drogas, por exemplo, e se amam, são parceiros, mas estão no trampo pela sobrevivência", diz Ailton Graça. "Se eles descerem mais um pouco vão perder a casa, virar catadores de lixo, o casamento talvez acabe", diz Vera Mancini. Dessa queda ainda maior Eurides mostra muito medo. "Olha esse sofá, que máximo", aponta a atriz Vera. A cenografia da Vera Hambúrger recria um apartamento de classe média baixa, porém depauperado. Assim, tem a opulência de um móvel comprado com um certo gosto, distante do estilo das lojas populares, porém já em estado de total degradação.

 

"Bacana nessa peça é que as pessoas, eu acho, não vão sair daqui com raiva desse casal, mas do sistema que nos coloca, todos nós, diante dessa situação de miséria", observa Vera. "Quando atuei em Babilônia, do Folias, conversei muito com moradores de rua. E a gente sabe que as pessoas não querem só comida, querem uma roupa bacana, tênis, dignidade, e a peça trata disso", diz Ailton.

 

Bem, mas ninguém é inocente nessa história. Por exemplo, depois de muito esticar já se rompeu a ética do personagem Vasquez, vivido por Paulo Américo, um falso argentino. Também é importante a participação da personagem Mariana vivida por Antoniela Canto, confundida pelo casal com uma assistente social, dessas que tiram os meninos da rua. "Depois, eles voltam e já perderam o ponto. A gente ajuda mais", diz a personagem Eurides na sua lógica implacável. "A Mariana está do lado de cá do vidro do automóvel, dentro dele, e diz o que muitos de nós sentimos, fala de medo, culpa e rejeição a esses garotos de farol."

 

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Diretora dos belos filmes Kenoma e Narradores de Javé - e do ainda inédito O Céu do Meio-Dia -, Eliane Caffé faz sua primeira direção teatral. Com um pedido de desculpas sempre à frente, ela pula no palco do Cosipa várias vezes durante o ensaio para fazer observações sutis e certeiras aos atores, sempre no sentido de "justificar" palavra e gesto pela relação pessoal que lhes dá sentido. "Prefiro um tom seco, voz grave, pausa, do que a voz chorosa", diz numa cena. "Não gagueja, perde a voz, paralisa", em outra. E a verdade que a diretora pede ao ator diante da arma amplia a graça da ?coragem? que só aparece depois de afastado o perigo. Para o leigo que está na plateia, ela parece pedir sempre do jeito melhor. Por sorte, tem no elenco atores capazes de compreender e realizar o que solicita.

 

Serviço

 

A Vida Que Eu Pedi, Adeus. 120 min. 14 anos. Teatro Cosipa Cultura (288 lug.). Avenida do Café, 277, 5070-7018. 6.ª, 21h30; sáb., 21 h; dom., 19 h. R$ 40 e R$ 50 (sáb.). Até 2/8

 

Quem são eles

 

AILTON GRAÇA - ARMANDO: Desempregado, criou sua própria empresa. Contrata ?funcionários?, sobretudo crianças, para trabalhar no farol de trânsito de uma grande avenida.

 

VERA MANCINI - EURIDES: Mulher de Armando, tem saudade do tempo em que viajava graças ao 13.º salário. Já foi engolidora de fogo. Quer diversificar as atividades do casal.

 

PAULO AMÉRICO - VASQUEZ: Vive de pequenas fraudes e está um degrau abaixo do casal na escala da degradação. Tenta ser honesto, mas não se submete à exploração.

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ANTONIELA CANTO - MARIANA: Mulher de classe média, ela é importante porque expressa o sentimento de quem está dentro do automóvel.

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