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O Desafio do olhar didático

Verbetes são estruturados para alcançar o maior número possível de leitores

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Por Redação
Atualização:

No decorrer do século 20, o problema do corpo, nos seus aspectos psíquicos, comunicacionais, culturais, antropológicos, filosóficos e fisiológicos foi entrando cada vez mais nas preocupações de intelectuais nacionais e internacionais até se tornar um dos grandes temas da cultura. Mesmo na biologia e na medicina, que eram seus redutos mais legítimos, a questão do corpo deixou de ser pacífica para se transformar em um problema com implicações legais e éticas.Constituído pela linguagem, sobredeterminado pelo inconsciente, pela sexualidade, pelo fantasmático e também construído pelo social, como produto de valores e crenças sociais, o corpo foi crescentemente se tornando o nó górdio no qual as reflexões contemporâneas são amarradas.Nas artes, que sempre funcionam como grandes sinalizadoras das mutações antropológicas e culturais, desde o início do século passado, o corpo foi deixando de ser uma representação, um mero conteúdo, para ir se tornando cada vez mais uma questão a ser explorada sob uma multiplicidade de aspectos e dimensões que colocam em evidência a impressionante plasticidade e polimorfismo do corpo humano. É o corpo vivo, na sua vulnerabilidade, no seu estar no mundo, nas suas transfigurações, que passou a ser interrogado.Com as artes e as ciências, também na literatura, filosofia e psicanálise, as dimensões da corporeidade foram radicalmente questionadas. Desde Marx, Nietzsche e Freud, que puseram em pauta a ação, a vontade e o desejo humanos, até então ignorados por causa da supremacia da razão, os conceitos sobre o corpo no mundo começaram a extrapolar sua suposta dimensão exclusivamente natural até então mantida sob a tutela da fisiologia e anatomia. Na esteira desses três grandes antecessores, com Michel Foucault, descortinou-se um campo de investigação relativo à ação das práticas culturais, instituições, saberes e poderes sobre a experiência do corpo. A partir de Jacques Derrida e Gilles Deleuze, as crises do sujeito e da razão abriram o caminho para um modo de pensar destinado a desconstruir a natureza unívoca do sentido e da forma, do ser e do logos. No cerne dessa crise, tratou-se também de redescobrir a natureza intensiva do corpo.Em suma, as margens instáveis entre o ego e o mundo, entre o real e o imaginário, entre o existente e o projetado fizeram do corpo, matéria do vivido, um sistema de interações e conexões. Esse caráter mutável do corpo em transição perene, sistema auto-organizativo com capacidade de responder à mudança, produzindo mudança, entra em sintonia com uma realidade em que os fluxos, movimentos e conexões acentuam-se cada vez mais.Para muitos autores, esse estado de coisas resultou, sobretudo, da aceleração das descobertas científicas e tecnológicas que vêm afetando profundamente nossas habilidades para observar, transformar e manipular as funções corporais e nossos conceitos do corpo. Pesquisas em campos como a farmacologia, fisiologia cerebral, tecnologia reprodutiva, doenças, próteses e a biônica levantam questões psíquicas e culturais que vão muito além dos limites meramente técnicos. As distinções outrora confortáveis entre masculino/feminino, vivo/morto, natural/artificial, corpo/descorporização, eu/outro, autônomo/controlado, orgânico/inorgânico estão sendo crescentemente erodidas. Quais são os limites naturais do corpo quando o humor, a força, a energia, a potência sexual e a inteligência são manipulados por drogas?Outros autores encontram as razões que precipitaram esse estado de coisas na fragmentação do sujeito, na espetacularização da realidade em função da desmesura da proliferação de imagens, sobretudo das imagens do <corpo nas mídias, na virtualização provocada pelas redes teleinformáticas, nas transformações do imaginário e do real do corpo ocasionadas pelas tecnologias com que o mundo e o ser humano estão sendo invadidos. Certamente, são muitas as razões que, agindo conjuntamente, constituem uma força perturbadora das tradicionais ilusões sobre a estabilidade de nossos limites corporais e de sua identidade unitária.Tendo um contexto de tal complexidade em mente, pode-se avaliar a importância da tradução deste Dicionário do Corpo, que as Edições Loyola, em coedição com o Centro Universitário São Camilo, entrega ao público de língua portuguesa. Trata-se de uma obra corajosamente organizada por Michela Manzano, filósofa e pesquisadora do CNRS, em Paris, contendo 1.090 páginas, 190 autores de 300 verbetes voltados para noções e conceitos-chave, pensadores e artistas que tomaram o corpo como via central de suas obras. Tudo isso acompanhado por remissões, bibliografia criteriosamente selecionada relativa a cada verbete e dois índices, um na entrada, com indicação dos autores, e um remissivo, na saída, logo depois da apresentação de todos os autores.O prefácio da obra, escrito pela organizadora, explicita as intenções que nortearam a sua elaboração. Embora consciente da enorme expansão da problemática contemporânea que cerca a questão do corpo, a intenção do dicionário não é evidentemente a de levar o questionamento ainda mais longe, mas, ao contrário, dar a ele uma função didática. A obra é movida pela busca e esperança de "ajudar um maior número de pessoas a entender os desafios do corpo".Os verbetes fazem jus à amplitude do campo. Para abarcá-lo, o dicionário é interdisciplinar. Destina-se a filósofos, aqueles que colocam a finitude da condição humana na mira de suas reflexões; a antropólogos e sociólogos, que estão convencidos de que a existência do humano é, sobretudo, corporal; a psicanalistas que "reconhecem quão insistente ou mesmo obsedante é o sofrimento relativo do corpo nas neuroses e psicoses"; a médicos, aqueles que sabem que "o corpo/sujeito foge de toda forma de redução materialista", enfim, ao público geral cultivado.Reunindo diferentes linguagens, o dicionário tece os fios de coerência entre elas, ao mesmo tempo em que permite ao leitor traçar seu próprio caminho de conhecimento no variegado leque de opções que lhe é oferecido. A organizadora espera que, em função de seus interesses e preocupações, o leitor encontre no livro informações seguras, instrumentos de análise novos, pistas de reflexões originais, sugestões e pontos de partida para aprofundar seu próprio estudo. A informação fornecida é, de fato, atualizada e compreensível, sem ser rasa, complexa e instigante, sem ser hermética. Numa visão apressada, a escolha dos verbetes pode parecer surpreendente e até mesmo aleatória. No entanto, a interdisciplinaridade não guia apenas a seleção dos temas, mas também o modo como são tratados. Cada tema cria, por isso, uma pequena subdivisão prismática que irradia em direções inesperadas.Como bem lembra a organizadora, não há como falar do corpo sem interrogar-se sobre as fronteiras entre o eu e o outro, as ambiguidades entre o ser e o parecer, o ser e o ter, o visível e o invisível, sem lançar um olhar sobre práticas que incluem tanto o milagre do parto quanto o horror à amputação, que vão da autópsia ao canibalismo, da alimentação à dança, do êxtase à guerra. Compreender o corpo significa falar do corpo de Cristo e do corpo do rei, do corpo sem órgãos e do corpo nômade. Significa, enfim, refletir sobre as turbulências da sexualidade e da histeria, sobre as ambivalências do narcisismo e a destrutividade do gozo, sobre a degenerescência e a morte, preço que pagamos porque somos corpos vivos que vêm ao mundo por reprodução sexuada: nossa irremediável e radical finitude.LUCIA SANTAELLA É PROFESSORA TITULAR E COORDENADORA DO MESTRADO E DOUTORADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL DA PUC-SP E AUTORA DE CORPO E COMUNICAÇÃO. SINTOMA DA CULTURA (PAULUS)

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