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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|O desabafo do apresentador

Me sinto o dono de uma livraria, de uma locadora de vídeo. Me sinto um fax! Meu drama chegou ao limite. Quer saber de uma coisa? 'Vão plantar banana!'

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Atualização:

- Nosso tempo infelizmente acabou. Obrigado aos convidados de hoje...

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Encerra a entrevista, olha para a câmera dois, vira a cadeira para ficar de frente, em plano americano, como indica o roteiro, e inicia sua despedida original, num texto que há anos segue à risca e se tornou já uma marca registrada, quase um bordão:

– E obrigado sobretudo você, assinante, sempre ligado no nosso programa. Sem você, nós não estaríamos aqui. Sem você, saiba que a síntese não se constrói no debate entre opiniões contrárias, e não chegamos a lugar algum. Sua audiência é o que nos faz refletir, buscar não apenas verdade, mas uma possível resposta que nos leve a aprofundar a visão que temos do todo e a elaborar mais perguntas, porque nosso papel é sempre questionar o que devemos questionar e ajudá-lo a encontrar um projeto, para florescer e germinar o consenso. Continue conosco.

Zoom in da câmera dois, para a despedida derradeira, o “boa-noite” cativante que faz fama e é imitado até pelas crianças. Mas que é surpreendentemente adiado. Ele continua:

– Deixa eu esclarecer uma dúvida. Nós não o estamos enganando. Assim como você, também temos questões, queixas. Fazer escolhas erradas faz parte do processo de aprendizagem. Porque a história não nasce pronta. Ela é construída por cada um de nós, de acordo com sucessos e fracassos. Tentativa e erro é uma experiência da essência humana. E, não, não somos robôs, apesar de muitos acreditarem que somos dispensáveis, já que alguns de nós apenas leem um roteiro previamente pautado, preparado, decorado ou visualizado no TP, diante da lente...

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Indeciso, sem comando do diretor, mais o silêncio no estúdio e nos fones de ouvido conectados à sala de controle de cortes, o switcher, o operador da câmera dá um zoom out por conta própria, percebendo que o bordão sai do planejado. A deixa não é dada, e o apresentador não encerra o programa.

– Você no fundo não nos conhece. Não sabe no que acreditamos. Não sabe o que estamos sentindo. Nossos valores... Você acha que sim, conhece, afinal, nos prestigia há tantos anos com a sua audiência. Viu algum de nós na privacidade do lar, em matéria de revista de celebridades, mas era o personagem que você via, com a mesma máscara e sorriso cuja voz todo dia dizia boa-noite num estrondoso e potente grave, como o meu. Viu fotos dele na banheira. Mas não tem ideia de como ele é, o que pensa. E é por isso que você, telespectador, deve ficar atento e não cair na tentação de negar seus valores. Estamos aqui para ajudá-lo a encontrar uma saída para seus dilemas pessoais. Você que nos faz acordar todas as manhãs com uma missão. Você que nos exige apurar a notícia, checar informações, elaborar pesquisas, recolher dados confiáveis. Você que dá sentido à nossa grade, programação, investimento, fé. A você, meu muito obrigado e...

A voz pausada faz o câmera voltar seu zoom in, crente de que, agora sim, vem a despedida, o grande final, já que o tempo estourou com o inesperado improviso do apresentador. Close nele. Que olha fixamente para a lente.

– Vai se surpreender ao saber que estou só, muito só, perdido, quase desesperado... Milhões me assistem. Mas sou solitário. É, não tenho ninguém em quem me apoiar, a quem recorrer, nesse momento de quase pânico em que vivemos. Os dias estão contados.

Câmera desiste, abre um zoom out. Olha os entrevistados convidados. Um, o ex-ministro, dorme sentado. A especialista da universidade se distrai fazendo selfies e postando no que aparenta ser uma rede social. O terceiro tenta se livrar do seu microfone na lapela, cujo cabo se enrolou no seu ombro. Continua o silêncio abissal nos fones conectados à sala de controle. Ele não pode perguntar o que fazer, pois aquele diretor proíbe que se fale no estúdio, mesmo em tom moderado. 

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Olha para os outros câmeras. O três abandonou o posto. Com pressa, pois estará no telejornal do estúdio vizinho. O câmera um desplugou seu fone, travou o tripé e foi se servir de café da garrafa térmica no fundo escuro do estúdio. O dois enfim o imita. Deixa a câmera ligada e o foco em plano americano. E vai tomar o café.

O apresentador abaixa a cabeça, toma um gole da garrafa de água que mantém no pé da mesa, que ninguém sabe o que tem dentro, mas fofocas dizem que é batizada, olha fixamente para a câmera dois. E continua:

– Quem não foi golpista? Ninguém mais estuda História. Toda a imprensa apoiou. O país estava indo para o buraco, à beira do precipício, um caos na economia, uma anarquia política. A polarização. Algo tinha que ser feito. Todos voltaram atrás. Era apenas para trocar a Presidência... 

Pausa, dá outro lado, como que para tomar coragem.

– CNN no Brasil, AT&T juntando Turner com HBO, Disney se juntando com a FOX, NBC, Hulu, esses malditos streamings, estava tudo tão bem, tão acabando com a gente. Netflix domina o mercado. Como vamos competir? Cadê a reserva de mercado? O brasileiro não é um patriota. Tem Google com YouTube, a Amazon, até a Apple, que estava feliz só com seus iPhones... Me sinto o dono de uma livraria, de uma empresa de motoboy, de uma locadora de vídeo. Me sinto um fax! Minha solidão só aumenta. Meu drama chegou ao limite. Quer saber de uma coisa?

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Respira, dá outro gole de sua água batizada e conclui.

– Vão plantar banana! Vão pentear macaco! Vocês não são fiéis a nada, audiência de m... Vão pra...! Piiiiiii...

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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