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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O declínio

Após quase 200 anos de crescimento da população, números desaceleram na maioria dos países

Atualização:

No século 18, a população humana se aproximava de um bilhão de pessoas. Levamos milhares de séculos para atingir esse número. De repente, um salto: em pouco mais de 200 anos chegamos a 7,5 bilhões de indivíduos. O ano de 1800 é, simbolicamente, o momento da virada.

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O salto começou nas Ilhas Britânicas. Morriam menos crianças e a longevidade aumentou. O padrão médio de vida sofreu uma elevação quase contínua. Ao mesmo tempo, fruto da urbanização e até da alfabetização das mulheres, o número médio de filhos foi decaindo. O “termômetro demográfico” pode ser simbolizado na família real. A rainha inglesa Ana (morreu em 1714) teve 18 gestações. Nenhum filho sobreviveu. Vitória, no século seguinte, teve nove filhos. Todos chegaram à idade adulta. O rei George VI e sua esposa Elizabeth, mãe da atual soberana britânica, tiveram duas filhas no século 20. É uma mudança notável. 

Paul Morland escreveu A Maré Humana (subtítulo: A Fantástica História das Mudanças Demográficas e Migrações Que Fizeram e Desfizeram Nações, Continentes e Impérios – editora Zahar, tradução de Maria Luiza Borges). Seu objetivo é analisar a demografia como fator histórico. Exemplo: a resistência russa à invasão nazista sempre é explicada em termos militares ou de nacionalismo eslavo. Porém, para o autor, ela nasce da revolução demográfica russa iniciada no século 19 e que dava a possibilidade de substituir os muitos soldados mortos por novos contingentes humanos. Para Morland, os nascimentos explicam tanto como as estratégias militares. Nascimentos, sobrevivência de crianças, diminuição da mortalidade e aumento da expectativa média de vida, somados a migrações, explicam uma maré montante ou em refluxo que estaria, para o autor, na base de muitos fenômenos históricos. Existe um outro fator: populações muito jovens são mais agressivas e aderem com maior facilidade a projetos militaristas dos seus respectivos governos. Populações envelhecidas são menos dadas a aventuras imperialistas ou agressivas. Esse seria outro fator para explicar a

Grande Guerra, por exemplo, ocorrida quando a Europa Ocidental estava tomada de jovens crescidos da revolução demográfica anterior. Da mesma forma, a Intifada Palestina de 1987 tinha uma população com idade média de 15 anos. A idade aumentou muito nos territórios palestinos e sempre atribuímos um relativo declínio das intifadas a fatores políticos ou econômicos. 

Para o autor, devemos levar em conta o envelhecimento. O “bolsão de juventude”, acompanhado de sentimentos de injustiça e desemprego, é terreno bom para fundamentalismos religiosos. 

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Sacerdote Shinto caminha próximo a cerejeiras no cemitério Aoyama em Tóquio, em 31 de março de 2016 Foto: Thomas Peter/Reuters

O reverendo Malthus alertou: crescimento geométrico da população levará à fome. Ele trabalhou com os dados disponíveis na época. Em quase todos os países, o baby boom dá origem ao baby bust e passamos da explosão ao declínio generalizado. As linhas não são sempre contínuas. Os EUA, por exemplo, deram um salto no século 19 em função de aumento interno e migrações externas. Depois, nas primeiras décadas do século 20, diminui a taxa de crescimento interno e termina o fluxo imigratório nos moldes massivos. A partir da Segunda Guerra Mundial, ocorre novo crescimento que volta a diminuir a partir dos anos 1960. 

O fenômeno demográfico é mundial e o autor quer destacá-lo como player fundamental no jogo de poder. Primavera árabe a partir de 2010? Pode ser relacionada ao crescimento de jovens liderados por políticos idosos no mundo islâmico do Norte da África. Os deslocamentos internos de sunitas para a capital Damasco, por exemplo, desestabilizaram o delicado equilíbrio de poder sírio. As migrações são fundamentais. Morland destaca que não existiria Israel sem maciços aportes populacionais judaicos no século 20. Para o autor, a demografia da faixa de Gaza afastou Ariel Sharon da tentativa de controle do local: a população ali nunca poderia ser superada pelos colonos israelenses. 

Analisando gráficos e dados, o pesquisador inglês acha a política chinesa de um filho por casal desnecessária. A urbanização e o crescimento econômico já agiriam mesmo sem a ação de Deng Xiaoping. Os japoneses também envelhecem com menos filhos. Depois de quase 200 anos de crescimento médio global, os números desaceleram na maioria dos países. Em alguns casos, como o citado arquipélago japonês, o envelhecimento preocupa muito. 

Há indicativos de menor interesse de jovens por famílias com filhos e até um crescente desinteresse dos jovens por sexo em muitos países. O Brasil, que Paul Morland trata em poucos parágrafos, também está envelhecendo, o que torna nosso censo demográfico necessário de forma quase desesperada. Como lidar com as mudanças que atingem todos? Como a previdência vai sobreviver com a diminuição da base da pirâmide populacional e aumento dos mais velhos? O livro se encerra refletindo que “a demografia moldará o curso da história, enquanto nascimento, morte, casamento e migração continuarem a ser os eventos mais fundamentais das nossas vidas” (pág. 320). Quer ter uma amostra pessoal para encerrar: quantos filhos tiveram sua avó, sua mãe e você? Por quê? Aqui começa um debate sobre crianças e demografia que, como sabemos, são parte da nossa esperança de futuro.

Opinião por Leandro Karnal
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