O colombiano Álvaro Mutis resumiu, com seu estilo pessoal de escrita, o espírito de uma época

Escritor, morto no dia 22, unia densidade dramática e inteligência venenosa

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Por Redação
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Ninguém mais simpático, inteligente e tocado pela graça e elegância que Álvaro Mutis (1923- 2013). Ninguém, ao mesmo tempo, mais sombrio, cético e de imaginação mais sofrida e exacerbada. Ninguém mais capaz de cantar e celebrar a existência humana e, ao mesmo tempo, revelar o que nela há de mais sórdido e violento. Ninguém, como ele, que aproximasse mais ambiguamente o homem que cria e a obra que ele engendra e que soubesse situar ambos na mesma procura do que há de transcendental no acontecer e no viver. Ninguém mais profundamente colombiano e convictamente hispano-americano que esse filho de diplomata nascido em Bogotá e partidário decidido do regime monárquico espanhol (e, sobretudo, da figura de Napoleão Bonaparte), que havia feito do México a sua casa e que, em seu tempo, muito animou e inspirou um jovem chamado Gabriel García Márquez, e que, no entanto, foi capaz de esboçar um personagem que viria a ocupar um lugar mítico na imaginação literária transcontinental chamado Maqroll el Gaviero (o marinheiro), que desde seu nome desconcertante rejeitava qualquer filiação a uma nação ou língua e apelava ao exercício consciente de uma liberdade órfã de regras. Ninguém, por fim, mais dono de um estilo pessoal de escrita e que aspirasse a resumir em seu desenvolvimento retórico o espírito de uma época.

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E algo mais, que é muito importante assinalar. Ninguém como Álvaro Mutis que, em sua travessia, tenha passado por avatares tão distintos e contraditórios. Em sua infância e adolescência, foi aluno de instituições europeias. Na juventude, foi um publicitário de eficácia fértil, e sua voz, no âmbito da língua espanhola, se tornou reconhecível como a que abria de maneira retumbante o difundido programa noticioso Repórter Esso e a que dublava com dicção impecável personagens da famosa série Os Intocáveis. Depois, quando a representação colombiana da empresa Esso o acusou de manejo imprudente de dinheiro que ia parar em causas humanitárias, um perseguido e um exilado que chegaria a passar um ano e meio preso na sinistra prisão mexicana de Lecumberri. E ele foi, a partir dos anos 50, um dos integrantes destacados da geração de escritores espanhóis e latino-americanos que, netos do modernismo de Ruben Darío e sobrinhos da poesia pura de Paul Valéry (e de Juan Ramón Giménez e Jorge Guillén), daria a uma história literária nomes tão fundamentais como José Lezama Lima, Pablo Neruda, César Vallejo, Vicente Alexandre e Octavio Paz. O “realismo sonâmbulo”, a “religiosidade sem teologia nem igrejas”, a “metafísica sensível” são os traços que melhor definem esse grupo de poetas que, nos primeiros passos criadores, buscaram uma fusão entre o fervor e a clareza, entre a fome de imortalidade e a consciência do finito, entra a prática poética e a poética teórica. O impulso erótico e religioso, de repercussões por vezes grandiosas e por vezes íntimas, que desembocaria no Neruda de [ITALIC]Cantos[/ITALIC] e no Paz de Liberdad Bajo Palabra, encontraria em Los Elementos del Desastre (1953, no qual aparece pela primeira vez Maqroll, seu alter ego poético) de Mutis, um título feito de arquiteturas suntuosas e respirações profundas.

A estada na prisão mexicana faria de Mutis um homem diferente do que era até então. Marcado pelas penúrias físicas e mentais, pela violência que é capaz de abraçar o homicídio e até o suicídio, pela deterioração pessoal e a decadência social, o autor abrirá nova etapa de sua obra. Nessa fase, o poeta indagará cada vez mais sobre os extremos da condição humana. Assim, Maqroll, que é um marginal e um vagabundo, que professa a paixão pelo mar e as viagens, que percorre terras ao mesmo tempo infernais e paradisíacas, que é a um só tempo vítima e taumaturgo, será também a encarnação de um trauma psíquico e de uma busca espiritual: um espelho de dimensões metafísicas. Livros como Summa de Maqroll el Gaviero. Poesia 1948-1997 (1997) e Empresas y Tribulaciones de Maqroll el Gaviero (1993) reúnem, nesse sentido, os textos decisivos. Aqui é preciso informar que existe um momento, no desenvolvimento de Mutis, no qual – sem solução de continuidade – a poesia se adentra na prosa e se torna tanto poesia em prosa com prosa poética até desembarcar, claramente, em uma narrativa que esboçará contos e romances. Trata-se do início de sua saga (Caravansary, 1981, Los Emisarios, 1984, A Neve do Almirante, 1986) que, quase sempre com Marqroll como protagonista, trará êxito e fama ao autor. Com efeito, Mutis (o Mutis do trópico colombiano enlouquecido, do exotismo obscuro, das ressonâncias históricas majestosas) será, entre 1980 e 1990, um escritor que, sem renunciar a seus traços mais arraigados, deslumbrará por uma capacidade criadora capaz de envolver seus livros numa atmosfera comum, em uma unidade de propósitos e em uma única consciência de estilo. Um verdadeiro macrocosmo – de tom encantador, inteligência venenosa e densidade dramática, características que, combinadas, acabarão por morder os convencionalismos e os lugares-comuns mais característicos da retórica ideológica e literária ibero-americana – surge do conjunto dessas páginas. Os prêmios e as honrarias que chegaram para celebrar Mutis, a partir do fim do século passado, foram, sem dúvida, o reconhecimento merecido de uma valente e sustentada trama criadora crescida entre o mundo da América Latina e o da Espanha.

TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIKDANUBIO TORRES FIERRO É ESCRITOR E CRÍTICO LITERÁRIO

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