O cello de Yo-Yo Ma em momentos quase místicos

Com sonoridade poderosa e visão pessoal das obras, ele dialogou com o piano de Kathryn Stott em recital

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Por JOÃO MARCOS COELHO
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O sonho de todo músico é fazer o público compartilhar suas escutas pessoais, ou seja, estabelecer contato imediato por meio do modo como ele interpreta, recria as obras-primas do repertório. Ora, vocês dirão, isso é óbvio. Nem tanto. Explico. Até conquistar a autonomia que só vem com a celebridade, o músico precisa curvar-se às exigências de diretores artísticos, elementos estranhos à prática musical (embora a ela ligados profissionalmente), que acabam por delinear itinerários muitas vezes não desejados. Um ótimo exemplo é a gravação do concerto duplo de Brahms com Anne-Sophie Mutter e a Filarmônica de Berlim, logo depois que o brasileiro Antonio Meneses conquistou a medalha de ouro no Concurso Tchaikovsky de Moscou em 1982. Quem a ouve a considera normal; Antonio não entendia o concerto daquela maneira, expressou isso ao maestro mas foi obrigado a curvar-se ao majestático kaiser de Berlim. E o que seria a primeira de uma longa série de discos para a prestigiadíssima Deutsche Grammophon abortou-se. Perversidade com o jovem músico, com certeza.Por isso, músicos de gênio como Yo-Yo Ma fazem questão de chamar o público para comungar com suas escutas personalíssimas. No recital de anteontem, na Sala São Paulo, com a pianista inglesa Kathryn Stott, ele nos levou para o universo das transcrições e arranjos, mostrando o fascínio da substituição do brilhantismo agudo do tenor (o violino) pela emissão aveludada e mais encorpada do barítono (o cello). Visões pessoais de obras às quais ele não teria acesso como violoncelista. A sonata nº 3 para violino e piano de Brahms, por exemplo. Yo-Yo Ma deve amá-la, como Schoenberg muitas décadas atrás, que adorava o quarteto para piano e cordas em sol menor, opus 25, e orquestrou-o. A alguém que o criticou, respondeu: "Amo a peça". E, depois de elencar outras razões, terminava dizendo que o quarteto em geral é mal tocado, pois quanto melhor o pianista, menos se ouvem as cordas. A transcrição para violoncelo e piano da sonata nº 3 para violino de Brahms também corre este risco. A parte do piano é majestosa, de fôlego sinfônico. Não fosse Yo-Yo Ma o piloto do cello, e tudo iria água abaixo. Porque o som de seu instrumento é algo inaudito: poderoso, enorme, preencheu toda a Sala São Paulo. Superado o problema do equilíbrio dinâmico entre os instrumentos, adentramos o reino de uma interpretação formidável. Piano e cello pareciam um só instrumento, tamanha a interação telepática deste duo curtido em uma década de estrada. O terceiro movimento, um buliçoso e sincopado scherzo, fez levitar. E no presto agitato final, a musica literalmente incendiou-se.Os concertos são memoráveis por um momento especial apenas. É raro a adrenalina manter-se elevada por todo o programa. Com Yo-Yo Ma, há sempre vários momentos eletrizantes. Ele "viaja" mesmo em cada peça, por mais simples que seja - como na primeira parte, onde tanto a Suíte Italiana de Stravinski quanto as três peças de Villa, Piazzolla e Guarnieri privilegiaram o reino da dança. E como suinga este duo. O neoclassicismo maroto/cínico de Stravinski transpareceu cristalino; nas peças latino-americanas, subiu o tom emocional. Mas o clímax da primeira parte foram as Sete Canções Populares Espanholas de De Falla. Rítmica exata, balanço sutil, nada escancarado, elementos que, mal dosados, estragariam sua graça tão cativante. Mas anteontem nada estava fora do lugar.A perfeição do toque de Yo-Yo Ma é tamanha, que poderia levar a pensar numa certa robotização. Longe disso. Ele alia perfeição técnica com uma atenção digna de um ourives a cada frase, cada nota até. Não há hesitações nem exageros, tudo é tocado no sentido justo, preciso. E encontra em Kathryn Stott uma pianista de exceção para a música camerística. Ela enfia a mão no piano quando necessário, não teme cobrir seu parceiro, porque o violoncelo de Yo-Yo Ma encara o poderoso piano com uma sonoridade incrivelmente segura e bela. Foi num momento zen, místico, que se realizou a maior comunhão entre palco e plateia: 9 minutos estáticos, de enorme intensidade musical, no "Louvor à eternidade de Jesus", o quinto movimento do Quarteto para o Fim dos Tempos, composto por Messiaen num campo de concentração Notas longuíssimas no violoncelo, secundadas por acordes solenemente repetidos pelo piano. Messiaen disse que a lentidão e duração destas notas do cello buscam evocar a eternidade de Cristo, "um tempo que nunca acaba". Naqueles minutos, Yo-Yo Ma, Kathryn Stott e nós, o público que lotou a Sala São Paulo, nos irmanávamos numa escuta privilegiada - a que este extraordinário duo nos propunha. Uma comunhão que provocou, como ano passado no final da opus 111 de Beethoven tocada por András Schiff, um silêncio total de vários segundos, até a explosão de aplausos.

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