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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|O bugre e seu duplo

Com seu livro, o advogado Burt Neuborne queria sacudir o torpor dos americanos diante do bufão narcisista, ignorante e grosseiro que ora ocupa a Casa Branca 

Atualização:

Na noite de quarta-feira, entrevistado pelo jornalista Bob Fernandes na TVE Bahia, o professor Vladimir Safatle mediu bem, como sempre faz, suas palavras – afinal, é um filósofo – e disse: “O governo Bolsonaro é um governo protofascista”. 

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Há quem desaprove o recurso a termos como “fascista” e “nazista” nos dias correntes, como se apenas fosse semanticamente correto dar atualizadas denominações a quem, de forma inconteste, compartilha das ideias básicas dos fascistas e nazistas de sete décadas atrás. Pelo suficiente que sei de nazismo e fascismo – e também por não ter passado os últimos sei lá quantos meses dormindo que nem Rip Van Winkle – posso afirmar, sem hesitação, que Safatle acertou na pinta. 

Alguém aí falou em cesarismo? Também está liberado. Para os dois. Pois é quase impossível dissociar Bolsonaro de Donald Trump, seu ídolo e xamã ideológico. O que um esbraveja e apronta, o outro repete, por vezes com menos de 24 horas de intervalo, uma demonstração contínua de macaquice e subserviência. 

Saíram ambos, como é sabido e detalhado no filme Privacidade Hackeada (ora streaming no Netflix), da mesma caixa de pandora eletrônica montada por Steve Bannon e outros alquimistas de algoritmos a serviço da ultradireita global e reencarnam, em outra escala, os delírios de onipotência e bufonaria populista que fizeram de Mussolini e Hitler os dois mais destacados demagogos do século passado. 

O historiador britânico Alan Bullock produziu um estudo comparativo entre as personalidades de Hitler e Stalin que poderia servir de inspiração a uma eventual análise da simbiose Bolsonaro-Trump, parceiros até na prática do nepotismo. Enquanto esperamos que alguém a faça, vou-me contentando com um estimulante ensaio de Burt Neuborne sobre as similaridades entre Trump e Hitler, lançado no último dia 6 pela editora The New Press, já na rede, em versão eletrônica, por US$ 14.30.

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Com apenas 190 páginas, When At Times the Mob Is Swayed (tradução livre: Como às vezes o povão é enganado) teve seu título extraído de um poema de Robert Frost, a que os editores acrescentaram um subtítulo, Guia da Cidadania para Defender Nossa República, mais palatável e apropriado. Neuborne, respeitado advogado com 55 anos de prática na luta pelos direitos civis e no enfrentamento a instituições poderosas, queria mesmo soar alarmista e sacudir o torpor dos americanos diante do bufão narcisista, ignorante e grosseiro que ora ocupa a Casa Branca. 

“Como uma figura tão casca-grossa e deplorável pôde chegar à presidência?” Dessa indagação, que cada vez mais brasileiros também se fazem pensando em Bolsonaro, Neuborne partiu para um exame detalhado de como Trump inflama e manipula sua escória eleitoral, hostiliza seus adversários políticos, humilha quem dele discorda ou lhe desagrada esteticamente e atropela as regras mínimas de civilidade e convívio internacional. 

Lyndon Johnson também era grosseiro, lembra Neuborne, mas Trump é um bugre inexcedível. Gerald Ford e George W. Bush também eram tapados; Nixon era antissemita; Clinton, machista e tarado; Reagan, demagogo – nenhum deles, porém, ostentava o mesmo grau de periculosidade do alaranjado sucessor de Obama. 

Em várias passagens do ensaio me senti lendo não sobre Trump, mas sobre seu clone brasiliense. O mesmo destempero, as mesmas bravatas, os mesmos preconceitos, os mesmos despautérios, a mesma necessidade de estar em evidência, de espezinhar a mídia, de produzir factoides e fake news; mas Trump, se absoluto em assédio sexual, ainda perde no quesito escatologia para o nosso presidente. 

O quente do livro é o segundo capítulo, dedicado às comparações de Trump com Hitler. Com notável desenvoltura e riqueza de detalhes, Neuborne aponta e disseca 20 semelhanças, partindo de uma revelação que eu até agora ignorava: Trump inspira-se há anos nos discursos do Führer, que devorava compulsivamente quando ainda casado com Ivanka. 

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Compilados entre 1925 e 1926 no livro Minha Nova Ordem, os discursos foram sua leitura noturna preferida durante um bom tempo, confidenciou a ex-mulher à revista Vanity Fair, em 1990. Se já é difícil imaginar Trump lendo um livro, com ou sem pijama, nem sequer um gibi consigo vislumbrar nas mãos de Bolsonaro. 

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Em dezembro de 2015, o New York Times analisou cinco meses (ou 95.000 palavras) de discursos de Trump e concluiu: seu estilo é o mesmo dos maiores demagogos do século passado, repetitivo, tonitruante, com os adjetivos e advérbios simplórios de um texto publicitário. Fazia então dois anos que a revista científica Psychiatric Quarterly traçara-lhe um perfil psicológico, aproximando sua retórica da eloquência do velho Adolf. 

Neuborne estabeleceu 20 pontos em comum entre os dois. Como Hitler, Trump ascendeu ao poder pela via eleitoral, sem obter maioria (perdeu no voto popular); conquistou o silêncio e a cumplicidade de setores-chave da sociedade; criou um canal direto com o eleitorado (Hitler monopolizou o rádio, Trump não sai do Twitter e da Fox News). 

Como seu modelo, Trump também glorifica as forças armadas; deslegitima e ofende a imprensa; mente descaradamente; desrespeita as normas de conduta internacionais; contesta a lisura do processo eleitoral; ataca a ciência e a cultura; é xenófobo e misógino. Nem a gestualidade do ogro alemão seu decalque desprezou.

Agora falando sério: quem se habilita a escrever um guia para defender a nossa República do protofascismo? 

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Opinião por Sérgio Augusto
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