O brasileiro pilantra

Perdura o estigma do cidadão com problemas com o contador e a polícia

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colunista convidado
Por Marcelo Rubens Paiva
Atualização:

Para o cinema americano, o Brasil é onde se escondem grandes criminosos, com a nobre inclusão de nazistas, lava-se dinheiro impunemente, paraíso sem lei que foi eleito um dos refúgios da bandidagem internacional, que consegue anonimato em praias paradisíacas, sob asas de araras, papagaios e armações de guarda-sol de coquetel de frutas, pendurada em redes amarradas em coqueiros, enrolada em braços e pernas de morenas cheias de curvas e poucas perguntas. Se lhe derem pimpolhos, a bandidagem se livra da extradição.  Na literatura americana do pós-guerra e em Hollywood, compõe-se a psique do brasileiro rico que passeia por lá. Tem sangue fervente, é um charmoso sedutor e bon vivant, bronzeado, misterioso, como personagem de La Dolce Vita: aristocrata sem castelo, de fortuna incalculável e sem procedência declarada. Na novela Breakfast at Tiffany’s (Bonequinha de Luxo), de 1958, de Truman Capote e que retrata os anos 1940, talvez um dos livros mais instigantes do seu tempo, o brasileiro em Nova York é um diplomata que se chama José Ybarra-Jaegar e fica noivo de Holly, a bipolar protagonista “call girl”.  No filme Bonequinha de Luxo, de 1961, adaptado por Blake Edwards, com Audrey Hepburn, ele se chama José da Silva Pereira e foi vivido pelo escritor e ator espanhol, o nobre José Luis de Villalonga. É apenas rico. Aparece nas festinhas regadas a bebida que Holly dá no seu apê em NY. Mas foge de soslaio quando a polícia é chamada pela vizinhança. Promete se casar com a garota de reputação duvidosa e trazê-la ao Rio de Janeiro.  Ela treina português num disco que ensina português de Portugal, veste-se como uma latino-americana. Muda a decoração da casa para motivos brasileiros. Pendura a cabeça de um touro nelore, revelando a confusão entre carioquice e gauchice, e tem a esperança de ter cinco filhos brasileirinhos.  Leva um fora, quando José da Silva descobre o envolvimento dela com um mafioso italiano preso, Sally Tomato. Ele não pode ter problemas com a lei. Deixou um presente ou veio falar pessoalmente? Nada disso. Deixou apenas um bilhete, dizendo que não podia manchar seu nome, e picou a mula. Norman Mailer dizia que Capote “é o mais perfeito escritor da minha geração” e que não mudaria duas palavras em Breakfast at Tiffany’s.  Me pergunto se foi o playboy Jorge Guinle, o Jorginho, cuja autobiografia se chama Um século de Boa Vida, herdeiro milionário que frequentou Hollywood e o leito de atrizes como Marilyn Monroe (que depois desmentiu), Hedy Lamarr, torrou uma fortuna de US$ 2 bilhões pelo câmbio de hoje em festas e mimos a Rita Hayworth, Kim Novak, Ava Gardner, Romy Schneider, Jayne Mansfield, Marlene Dietrich, Janet Leigh, nunca trabalhou, morou no Copacabana Palace, hotel da família, quem, apesar da renda declarada, deu vida ao arquétipo do brasileiro enrolado com a contabilidade. Ou será que este brasileiro arquetípico é fruto da economia do País: uma ex-monarquia decadente, rica, mas sem saber quanto, gastona, sem cumprir com suas obrigações, envolvida em tramoias e escambos não declarados, platônica, que pode perder tudo da noite pro dia, mas jamais a soberba, a pose de “sou o futuro”, uma falsa autoconfiança que se desmancha quando posta à prova e são reveladas as pedaladas. Em quem Capote se inspirou? Quem é Holly e como ganha a vida é um dos maiores mistérios da literatura. E, o que mais intriga: por que José quer se casar justamente com a garota de reputação duvidosa? Identificação? Ela mora sozinha, sai com homens ricos, janta e dança com eles, ganha joias, presentes, e os seduz. Ganha US$ 50 por uma “ida ao toalete”, sem nunca ficar claro o que significa. É uma escort, uma acompanhante.  Não sabemos se é uma prostituta assumida, apesar da cena numa festinha em que seu amigo-agente (ou gigolô) pergunta insistentemente: “Você sabe o que ela é, não sabe?”. Holly se encontra com os caras em lavabos. É livre, dorme com quem quiser. É um tipo comum da cena americana da época, como Oona O’Neill, amiga de Capote, que de bar em bar namorou Orson Welles, Salinger e se casou com Chaplin.  No livro, ela é uma adolescente livre e independente, bissexual, que fuma maconha e desaparece no final. Aparentemente, foi vista na África, numa foto desfocada, como Rimbaud.  No filme, é a namoradinha da América, Audrey, até hoje eternizada em camisetas, pôsteres e cartazes vendidos nas ruas de Nova York, papel antes oferecido a Marilyn Monroe, que não o fez porque filmava em Paris.  No filme, Holly tem um final feliz. No livro, some. Numa entrevista à Playboy, indagado se sua personagem era uma prostituta, Capote enfim esclareceu que era o protótipo de uma mulher livre, do tipo que seduz homens, mas não se prostitui, uma versão americana de “geisha girl”. “Holly Golightly não era exatamente uma garota de programa. Ela não tinha emprego, mas acompanhava homens nos melhores restaurantes e clubes, que sabiam que sua companhia deveria ser recompensada com presentes, talvez uma joia ou uma grana. E que ela os acompanharia a noite toda e poderia dormir com eles, mas não necessariamente, tipo de garota muito prevalecente nos anos 1943 ou 1944.” Ele conta que Holly existiu e foi sua vizinha. Numa época em que as mulheres não conseguiam trabalhar, frequentar bares sozinhas, serem independentes, ser uma Holly era ir atrás de desejos de consumo e sexo, a expressão de uma libertária que tem os homens a seus pés. Mas não rompia com as algemas do xis da questão: a emancipação feminina.  Por mais linda, cativante e moderna, Andrey “Holly” Hepburn que estampa as camisetas é uma mulher ultrapassada, que duvido que inspire outras. Já o brasileiro com problemas com o contador e a polícia... Este estigma perdura.

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