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O Brasil no divâ do psiquiatra

Por Paulo Gaudencio Estou, como todos os brasileiros, ao mesmo tempo pasmo ao verificar a que ponto chegaram a desqualificação e a banalização dos valores e preocupado com os desdobramentos a que, a meu ver, a curto prazo, podem ocorrer. Temo um rompimento do tecido social. Temo porque me parece que seu esgarçamento já passou do ponto de reversibilidade. Como estamos imersos no processo, fica difícil determinar as causas. Podemos ir da proposta Heggeliana, isto é, de que estamos vivendo a antítese da rigidez de valores com que fomos educados até à proposta da teoria do caos. Tenhamos ou não o rompimento do tecido social, a história tomará o seu rumo, as coisas adquirirão um sentido e saberemos explicar porque tudo isso aconteceu. Se, no entanto, conseguíssemos entender mais agora, poderíamos ter maior influência sobre os desdobramentos, e torná-los menos destrutivos. Sou médico psiquiatra e professor há 40 anos. Nos meus dois campos de trabalho, o terapêutico e o educacional, vivenciei a mudança de um valor que, creio, está na raiz de inúmeros desencontros. Falo do uso maduro e adequado do impulso agressivo: a colocação de limites. Outro dia, num almoço, uma educadora disse a frase que sintetiza o enorme engano que nossa geração está cometendo. Gostaria, antes disso, de descrever a educadora. É uma pessoa que admiro. Como mãe e como profissional. Seus filhos, todos adultos, são pessoas sérias, alegres, bem ajustadas. Ela pode se orgulhar do sucesso nesse papel. Como profissional, é diretora de uma escola. Trabalha o dobro do horário exigido. Recebe um décimo do salário justo. Como esse salário não é fundamental na economia doméstica, ela trabalha, e muito, por idealismo. É uma típica professora brasileira. Conversávamos sobre a sua escola, quando ela disse: "Hoje está proibido fumar na escola por lei Federal, Estadual e Municipal. E os alunos continuam tentando fumar. Eu sou obrigada a reprimi-los. Eu gosto muito mais quando sou somente educadora." Essa frase sintetiza o engano de nossa geração. Quando nós colocamos limites, nos sentimos como estando reprimindo, e deixando de ser educadores. Não conseguimos mais perceber que colocar limites é educar. Se queremos viver em sociedade, algumas normas de convivência devem ser contratadas. São as leis. Uma das condições fundamentais para que essas leis, esses contratos, sejam justos, é que sejam iguais para todos. Todos devem seguí-la. Por isso, existe uma punição para quem não as seguem. O Educador deve ensinar o respeito à lei. Em todas as suas facetas. O código de trânsito, as normas da empresa, a Constituição do País, as normas da escola. E ele precisa ter consciência de que não educa só quando ensina teoricamente a lei, mas, também, quando a executa na prática punindo quem não a cumpre. Se a lei diz, e ela o faz em três instâncias, que é proibido fumar na escola, o aluno que o fizer deve ser colocado para fora daquele local, para que possa fumar na rua, onde isso é permitido, e só poderá voltar a escola se abdicar daquele gesto naquele local. Porque é proibido. E não é proibido porque alguém resolveu aleatoriamente, só para se divertir ou incomodar o próximo. É proibido porque é lesivo á saúde das pessoas, inclusive das que não fumam. Quando o educador pune a transgressão à lei, está educando. A dicotomia proposta na frase é falsa. E uma admirável educadora foi induzida a acreditar nessa dicotomia. E se ela for uma amostra válida de nossos educadores, e eu acredito que ela o seja, tanto no idealismo quanto na forma de pensar sobre educação, acho que poderemos começar a explicar muitos fatos que aparentemente não tem relação entre si, como o aumento da criminalidade, a greve dos professores e dos caminhoneiros, a postura do MST, OAB e CNBB e o esgarçamento do tecido social.

Por Agencia Estado
Atualização:

Como tem se manifestado esse engano sobre o da agressividade nas famílias? Tem sido pela ausência na colocação de limites. Os pais não sabem dizer não. É aversiva para eles a idéia de "causar sofrimento" aos filhos. Por que isso está acontecendo? Tem-se dito com freqüência que a causa de tal comportamento é dialética. O crescimento não se faz de maneira linear. Nós vamos de uma tese para a antítese. Só depois chegaremos à síntese, que vai ser a tese de outra antítese. Ou, como diriam de forma absolutamente clara e competente as nossas avós: -"Quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza". Viemos de uma proposta educacional que não levava minimamente em consideração a opinião dos filhos. Serem eles frustrados era parte essencial do processo educacional, não se considerando qualquer possível injustiça ligada ao ato. "O que arde, cura. O que aperta, segura". "É de pequenino que se torce o pepino". São ditados que todos nós conhecemos e lembramos como componentes essenciais de nosso processo educacional. A proposta de que estejamos vivendo a antítese é a de que estejamos nos lambuzando de liberdade, de ausência de limites, de excesso de respeito à vontade e aos desejos de uma pessoa, numa fase em que a expressão dessa vontade e desses desejos é inviável, por ser ela menor e heterônoma. Outra razão freqüentemente invocada é a culpa. A geração de nossos pais tinha uma divisão de tarefas na esfera educacional. Ao pai cabia a manutenção da família e a reserva moral. Cujo uso era constantemente ameaçado, embora raramente isto acontecesse. -"Quando o seu pai chegar, você vai ver..." Cabia à figura materna a função de educar. Tinha o tempo necessário para isso, visto que sua função básica era administrar o lar. Já existia o germe de dicotomia, na medida em que a colocação de limites, a "repressão" era freqüentemente feita pela figura materna, mas em nome de uma outra autoridade. Uma das muitas conseqüências da revolução industrial foi a saída da mulher de casa. Ocorreu uma enorme mudança de valores, acarretou uma profunda mudança nos diferentes papéis da mulher. O que era valorizado era a mulher sensível, afetiva, pouco ligada ao racional, "manutenida" e por isso submissa ao marido, distante das coisas sexuais, etc... Tínhamos um tipo de mulher que se manifestava, com esses valores, nos diferentes papéis: mãe, filha, esposa, etc... Hoje o que valorizamos é muito diferente: sensível, afetiva, inteligente, boa de cama, independente (de "in" = dentro e "pendente" = pendurada). Temos outro tipo de mulher que se manifesta em papéis de mãe, esposa, filha, etc...essencialmente diferentes dos antigos. A valorização da realização profissional é, hoje em dia, igual em ambos os sexos. O equilíbrio de "o homem mantém, a mulher educa" está definitivamente rompido, e, a nova forma de equilíbrio não foi ainda encontrada. Demos um salto e ainda não atingimos a outra margem. Só que esse salto levou os homens e as mulheres para fora de casa. Esta atuação conflita com valores seculares. Há um descompasso no tempo em que se dá a mudança a nível consciente e a nível inconsciente. Contei, inúmeras vezes, um episódio ocorrido comigo há alguns anos. Recebi uma homenagem numa cidade de interior. O "cocktail" foi na sala de espera do cinema da cidade, que era decorado de forma moderna, com esculturas de "néon", etc... Ao adentrarmos o cinema para a palestra, verifiquei que a decoração do interior era colonial. A emoção da homenagem fez com que, ao invés de críticas à atuação do arquiteto, eu conseguisse ver uma metáfora do nosso ritmo de mudanças. Temos uma sala de espera moderna no nível da consciência e que é facilmente mutável. Nosso interior, no entanto, é colonial. As mudanças no nível do inconsciente são muito mais lentas. Ocorre, com enorme freqüência, estarmos tendo um comportamento que no nível da consciência nós aprovamos, mas que, no nível inconsciente, nós condenamos e acabamos nos sentido culpados por ele, apesar de aparentemente aprovado e aceito. Sentindo-se culpados pela ausência no lar, ambos, pai e mãe tentam compensar a culpa pelo afastamento de qualquer sofrimento que possam infringir aos filhos. Ambas as explicações, a da vivência do exagero oposto e a da culpa, não se contrapõem entre si. Ao contrário, se complementam e se potencializam. Seja qual for a etiologia, o resultado prático é que os pais abdicaram do papel educacional, tentando delegá-lo à escola, e, pior ainda, não tendo com esta uma proximidade e uma sinergia na ação. Delegam e se omitem, no depoimento unânime das escolas. E quando estas assumem a tarefa pedagógica de colocar limites, não têm contado com a colaboração dos pais, quando não encontram neles severos adversários. Que conseqüências acarretarão para os filhos? Basicamente duas, e ambas de importâncias primordial no ajustamento humano normal: uma insatisfação e um afrouxamento na formação de valores. Vivi, há cerca de 25 anos atrás, um episódio que tem todos os ingredientes citados. Meu casamento terminara depois de uma prolongada crise. Eu acabava de me separar, carregando comigo toda a sensação de fracasso que uma separação desencadeia e de culpa em relação aos filhos. Eu me tornara um dos muitos "pais de fins de semana". Aos domingos, o programa era pegar os filhos, almoçar num restaurante e ir ao play center. Era uma atividade prazerosa e cansativa. Especialmente a volta. Esta era somente cansativa, marcada por uma enorme irritação de todos os envolvidos. Todos os filhos queriam a mesma janela do carro e a disputavam com muita irritação. A explicação que eu me dava era a proximidade do fim do domingo. Sempre me achei especialmente protegido por Deus. Nessa hora, esta proteção de novo se manifestou, e eu enfrentei a maior crise econômica da minha vida. Profunda e demorada. Sem dinheiro suficiente para continuar bancando a farra que era patrocinada pela culpa, fui obrigado a introduzir novas regras nos nossos passeios. Ao invés de ir em todos os brinquedos, haveria um limite. Três para cada um. Para meu espanto, não houve a reação de revolta ou de dor, que eu esperava. Ao contrário, os cinco imediatamente se organizaram num jogo que tinha por finalidade fazer com que eu perdesse a conta e um deles, qualquer um deles, conseguisse ir em quatro brinquedos. Aderi ao jogo, me deixei enganar e me surpreendi com a volta do passeio. Que foi tranqüila, sem competições, sem agressões.. Entendi claramente que a irritação era o resultado de uma insatisfação. E que esta era o resultado da ausência de limites. Como podiam ir em todos os brinquedos, havia a ansiedade de ir no maior número possível e, por isso mesmo, nenhuma possibilidade de curtir o prazer que estava sendo vivido naquele instante. A colocação de limites, apesar da culpa que eu sentia, pôs fim à insatisfação e permitiu a curtição do momento vivido. A segunda conseqüência se refere à capacidade de nós mesmos colocarmos limites às nossas próprias emoções, isto é, termos controle sobre elas. Se eu quiser entender o ser humano, a primeira noção a ser assimilada é a de que ele é um animal essencialmente conflituado, isto é, o conflito faz parte de sua natureza. Se eu falo de um animal racional, estou falando de conflito constante que se estabelece entre o que o homem sente e o que ele pensa. Das diversas formas que poderia usar para exemplificar, a que mais me agrada é a metáfora usada por Platão em Fedro. Ele compara o ser humano com uma carruagem, cujos cavalos simbolizam as emoções. Cada cavalo é cego, pensando apenas na própria realização. Freqüentemente os cavalos entram em conflito entre si e têm um conflito constante com o cocheiro, que representa a razão. Este deve ver para onde os cavalos devem se dirigir e, com as rédeas, a vontade, deve orientá-los nessa direção. O ser humano, portanto, censura seus impulsos. Todos? Não. Ele censura os impulsos que não correspondam a seus valores. A vivência, maior ou menor das emoções, vai depender, portanto, de valores de cada ser humano. Muitas patologias de comportamento também. A inexistência de valores corresponde a uma patologia grave que conhecemos como Personalidade Psicopática (PP). Doença de etiologia desconhecida e, em função disso, de tratamento desconhecido. É congênita e, portanto, não é formada pela educação. O portador dessa patologia é, inclusive inimputável, na medida em que a inexistência de valores significam inexistência de censura. Sentido o desejo, este se transforma em atuação, sem que o indivíduo tenha qualquer censura moral. Felizmente é uma patologia rara. Em 40 anos de vida profissional, vi apenas dois casos. Devo confessar porém que a atuação de alguns deputados em Brasília e de alguns vereadores em São Paulo, tem me deixado em dúvida em relação a estatísticas. O extremo oposto dessa situação é uma patologia extremamente freqüente, e de origem educacional. Nessa patologia, o indivíduo tem valores extremamente rígidos e elevados, cobrando-se uma perfeição inatingível. Como o indivíduo se cobra um comportamento perfeito, há poucas emoções que correspondam a tanta perfeição. A censura a elas será, portanto, muito grande, havendo uma diminuição da vivência das emoções nos diferentes papéis. É o perfeccionismo. O equilíbrio se dá quando a pessoa tem valores adequados, censurando impulso e os mantendo sob o controle da razão, do cocheiro. Como se dá a formação desses valores básicos na família? Se dá via trocas afetivas. Existe um mecanismo fundamental no relacionamento humano, a identificação projetiva. Se eu tenho algo reprimido em mim, e outra pessoa vive, diante de mim, o que eu tenho reprimido, vou sentir uma carga agressiva contra essa pessoa. Se esta pessoa for meu filho, minha filha, esta carga agressiva vai se manifestar como rejeição. Na realidade eu amo meu filho, mas me rejeito nele. Só que visto pelo prisma dele, rejeição é desamor. Para evitar essa dor, ele passa a reprimir nele o que eu tenho reprimido em mim. Na realidade, muitos valores são inconscientes e passados inconscientemente. Existe um reforço afetivo aos valores aceitos e uma rejeição aos valores não aceitos. A ausência dos pais, real quando não estão fisicamente presentes, ou emocional, quando se abstém de participar da formação dos filhos, acaba criando uma geração com uma diminuição de valores e, portanto, com uma diminuição da censura das emoções que não correspondam a eles. Esta geração se caracteriza, portanto, por uma insatisfação e uma diminuição da censura na busca da satisfação. Em outras palavras, reagem como se a satisfação dos impulsos fosse um direito inalienável deles, e os outros lhe devem essa satisfação, sem direito de colocar limites a ela. De outro lado, este engano que nossa geração cometeu na visão da educação, como tem se manifestado fora da família? De maneira completamente conseqüente, há uma reprodução. Nossas autoridades também acham que colocar limites é reprimir. Isto dá base a discussões que ouço, na intimidade, com amigos, ou na mídia, que me deixa pasmo. As discussões são dicotomizadas, sempre com alguém defendendo que o combate à criminalidade deve ser feito pela via da educação e outra pessoa brigando para impor sua opinião de que só é possível combater a criminalidade com cadeia, com uma legislação que assuste qualquer candidato a qualquer infração. E essas duas visões se pensam antagônicas, uma ou outra deve ser implementada. Porque se uma está certa a outra está completamente errada. Além disso, essa dicotomia é radicalizada. Os defensores da "linha dura" advogam que a pena de morte é a solução. Só o medo desta punição poderá deter a onda de violência. A radicalização dos "educadores" não é verbalizada com ênfase, mas aparece de forma sutil. Defende que como os mais pobres e menos educados não têm culpa dessa situação, e, ao contrário, são explorados e mantidos na ignorância, o que é verdade, é justo que eles possam cometer transgressões em defesa de seus "direitos". Sem temer qualquer preocupação com a perigosa contaminação deste conceito. Perdemos a visão que as duas posturas não são antagônicas, mas complementares. Perdemos a visão de que colocar limites e exigir o respeito a eles, e punir qualquer desrespeito, faz parte do processo educacional. As autoridades passaram então a não mais reprimir os oprimidos. Sem demonstrar qualquer preocupação com o alcance desta atitude. Importantes órgãos formadores de opinião participam desta batalha pública e equivocada, exponenciando o equívoco. Quando a OAB apoia a uma transgressão à lei, é preocupante que a entidade não perceba o alcance desta atitude. De todas, a que mais me causa espécie é a CNBB. Tenho uma formação religiosa católica. Era na década de 50, membro militante da Juventude Universitária Católica, tendo sido, inclusive, presidente deste movimento de leigos, e sofrido na pele a repressão da Revolução de 64 pelas idéias que defendia. Aprendi que Deus amou tanto os homens que enviou seu filho unigênito ao sacrifício para pagar a culpa do pecado original. Aprendi também que, ao lado do perdão, criou normas que direcionassem o comportamento humano, colocando limites no exercício das emoções. Colocou também uma punição para aqueles que reiteradamente transgredissem as normas, pois teriam a condenação eterna no inferno. Até pouco tempo atrás eu cheguei a ficar preocupado com o que poderia acontecer com o Criador. Temi que ele fosse expulso dos quadros da Igreja, se não abdicasse daquele entulho autoritário. Minha preocupação acabou quando um padre ousou defender o uso da camisinha para a prevenção da AIDS. A postura dos bispos me mostrou que continuam existindo normas, que há limites claros para o comportamento, que há punição quando as normas são transgredidas. O inferno continua válido. Mas não para todas as transgressões. Algumas, desde que tenham uma justificativa política válida, são permitidas. A despreocupação com o alcance desta atitude é chocante. Não só a postura dos país na família é reproduzida na sociedade. A postura dos filhos também o é. Se em casa estamos criando uma geração ao mesmo tempo insatisfeita, que acha que a satisfação de seus impulsos é um direito inalienável deles e que os outros lhes devem essa satisfação, sem direito de colocar limites a ela, evidentemente encontramos essa reprodução no social. Professores fazem uma greve em defesa de seus direitos. Invadem a Avenida Paulista, ocupando ambas as pistas e criando o caos no trânsito. Quando a polícia tenta desobstruir uma das pistas, há o protesto contra a atitude arbitrária, autoritária e repressiva de querer fazer cumprir a lei. O governador do Estado é agredido fisicamente por grevistas. Um aluno discorda da nota que a professora atribui à sua prova e, como a professora não se dispunha a mudá-la, agrediu-a, quebrando inclusive a sua perna, porque ela teve a atitude arbitrária, autoritária e repressiva de querer cumprir a lei. E ninguém parece perceber a relação entre os dois fatos. Caminhoneiros em defesa de seus direitos bloqueiam as estrada. Ao invés de deixar uma pista para que as pessoas não sejam prejudicadas, bloqueiam as estradas completamente. Quando a polícia tenta desobstruir uma pista, no cumprimento da lei, o presidente do Sindicato protesta, dizendo que a greve fracassou porque a polícia, de forma autoritária, fez cumprir a lei. Fiquei impressionado com a postura dos assaltantes, em todos os três assaltos que sofri. Era uma postura arrogante. Vi um pai de família apanhar porque não tinha dinheiro em espécie no bolso. Acabou dando graças a Deus por não ter sido morto. O assaltante achava que aquele dinheiro era um direito dele, negá-lo era como negar pagamento do salário pelo exercício do papel profissional. Pais preocupados não se esquecem de dar para o filho, na saída para a escola, o dinheiro para o assaltante. Li o caso do chinês queimado, na imprensa, que assaltantes amadores são mais perigosos, porque acham que o fruto de um assalto é direito seu. Como se dá o embate entre pessoas que não conhecem limites e as autoridades que não sabem que exigir o cumprimento deles faz parte do processo educacional? Qual a postura das autoridades? Por fragilidade, culpa ou ignorância não conseguem ter uma postura agressiva, adotando posturas alternativas. O que é uma postura alternativa? Imaginemos um barco indo para uma cachoeira. Encontramos, nesta situação, três tipos de postura que são possíveis. A mais freqüente é a postura passiva. O indivíduo não reage, deita-se no barco e se deixa destruir. A segunda postura possível, mais rara, é a agressiva. O indivíduo assume o timão e muda a direção do barco. Ele age, não fala. Há uma terceira postura, tão freqüente quanto enganosa. Eu a chamo de atitude malcriada. O indivíduo fica em pé no barco, xingando. "Eu protesto contra essa correnteza que nos destrói...". Ele fala, não age. Como fala alto e faz muitas ameaças, ele pensa estar sendo agressivo. Mas nunca vai mudar nada. É um passivo barulhento, que desperdiça a energia agressiva, jogando-a pelo ladrão da caixa d´água da malcriação. O relacionamento do governo com o MST ilustra exemplarmente a metáfora. Repetitivamente. O movimento faz uma reivindicação qualquer. O governo acha a reivindicação descabida e a nega. O MST age, invadindo prédios públicos ou fazendas, mesmo as produtivas. Intermediados pela CNBB, ministro e representantes do movimento sentam-se à mesa e, monotonamente, o governo cede. Claro que, em pé no barco, o ministro grita que "é a última vez que faz isso pela última vez". No jornal de 03/11/00, na primeira página, o jornal O Estado de São Paulo publica: "Planalto avisa: não vai tolerar invasões do MST". O ministro chefe do gabinete de Segurança Institucional diz: "Não precisava ser de nenhum serviço de Inteligência para saber que, passadas as eleições, o MST ia começar a se mobilizar novamente". Concordo plenamente. E acrescento: "Não precisa ser nenhum Nostradamus para saber o que vai acontecer". O MST acampa diante da fazenda dos filhos do Presidente. A ameaça é a de que farão algo ilegal, que seria a invasão da propriedade. O exército é chamado para fazer o que? Já assistimos, pasmos, um caminhão que seria desta fazenda ser saqueado diante dos olhos das autoridades, que não podiam reprimí-los. Como não podem fazê-lo, sentam-se à mesa, o ministro fica em pé no barco, e... já sabemos a monótona continuidade. Não me preocupa aqui o MST. Acho inteligente sua forma de pressão. Sou amplamente favorável à causa da reforma agrária e é evidente que o que pode ter acontecido neste País sobre esse tema, é devida à pressão do MST. Tenho até a esperança de que um dia qualquer, num futuro não muito remoto, ambos, MST e governo queiram esta reforma. Isto porque, hoje em dia, não acredito que nenhum dos dois queira. Mas, dizia eu, acho a pressão inteligente. Não é o que preocupa. Apavora como são as conseqüências sociais da postura do governo. É incrível que não se perceba o que esta alternância de posturas passiva e malcriada, esta ausência de uma agressividade saudável desgasta a figura de autoridade. E que a perda do respeito pela autoridade dá espaço para a agressão física ao governador, à quebra da perna da professora, a invasão de delegacias, o resgate de presos e caça aos PM no Rio? Paralelamente à falta de atuação de nossas autoridades, a imprensa livre tem conseguido deixar a nu a injustiça de nossa justiça. Ela foi feita pelos poderosos para os poderosos e se mantém assim. A seqüência de notícias deixa dar à população que a impunidade é baseada na lei. O ex-senador é preso e passa uma noite na cadeia. O ex-deputado, livre, consegue administrar a lei e, provavelmente, irá arcar com as conseqüências de seus atos com trocados de sua fortuna pessoal. O banqueiro é preso e solto por ordem da justiça. É pedida sua prisão novamente, uma semana depois, quando ele já se encontra confortavelmente instalado fora do País. É então feito um pedido de extradição que todos sabem inócuo. A juíza passa a ter liberdade para gastar o que roubou. Tudo absolutamente dentro da lei. A injustiça é absolutamente ilegal. São fatores cuja soma é perigosamente explosiva, dependendo apenas do caldo de cultura. Baseados na falsa dicotomia educação - repressão, temos pais que não colocam limites e sabotam a escola que tenta fazê-lo. Como conseqüência, filhos insatisfeitos e com baixo controle das próprias emoções, cheios de direitos e sem deveres. As autoridades reproduzem a não colocação de limites, oscilando entre as posturas passiva e malcriada. A justiça é evidentemente morosa e parcial, na medida em que um bom advogado bem pago pode torcê-la a seu bel prazer. O que acontece conosco, com os cidadãos comuns? Eles estão divididos em dois times: os delinqüentes e os homens de bem. Os delinqüentes festejam. A ausência de limites, o verdadeiro nome da impunidade, dá campo aberto e cada vez mais aberto, às atividades ilegais. O medo à autoridade federal, estadual, municipal, policial, jurídica, militar, desaparecem. A caça aos PM no Rio de Janeiro é o último degrau. Digo último no sentido de mais recente. Nem de longe imagino que último significaria o final deles. Ainda há muito chão a caminhar. Os delinqüentes acharam uma via livre, na medida em que não têm o que perder. Descobrem um policial, ele é levado para uma favela, torturado publicamente e morto. Um policial, se matar um delinqüente terá, e é justo que assim o seja porque a lei assim o exige, que explicar o porquê de tal tipo de atuação. Se não poderia ter tido outra atitude, etc... Em São Paulo, ficará afastado do serviço de rua pelo prazo de seis meses. Nada contra esse tipo de atuação, porque é legal. Apenas temo as conseqüências. O medo é um mau conselheiro. Animal acuado é animal perigoso. Temo, e creio que vai ocorrer, a repetição, em maior escala, dos episódios da Favela, do Carandirú, da Candelária, de Carajás. Afinal aqui também a justiça é morosa e parcial, e se coloca do lado dos poderosos. Este é o esgarçamento do tecido social que acho evidente, que me assusta como as autoridades constituídas não percebem e que temo que tenha passado do ponto de reversibilidade. E o que acontece conosco, com os homens de bem, os que pagam seus impostos e que são defensores da lei e da ordem e tementes a Deus? Acho que precisamos analisar o que é visto na sala de espera moderna e o que acontece no interior colonial. Na sala de espera, que mostra como nós pensamos, a sensação é de medo e, paralelamente, uma esperança nas autoridades constituídas. Esta esperança está baseada na confiança na imprensa livre e no Ministério Público independente. É saudável perceber que o medo de que se torne público a transgressão e de que esta transgressão seja, enfim, punida, começa a servir de limites para os desmandos dos homens públicos. Causa frustração a constatação de que tanto as notícias publicadas quanto a atuação do ministério público possam ser filtradas ideologicamente. Uma parte da população começa a perceber a sua parte de responsabilidade e se organiza para tentar resolvê-la de forma independente do governo. Independente não significa contrário a, significa "in", dentro, e "pendente", pendurado. Pendurado dentro de si mesmo, independente. Não mais esperando que a solução venha de fora, de quem é legalmente responsável pela viabilização desta solução. Até que nós, os homens de bem, estamos reagindo de forma razoável no nível racional. O mais preocupante, no entanto, é o que ocorre no interior colonial, na esfera do que nós sentimos e não revelamos, freqüentemente nem a nós mesmos. Podemos verificar o que ocorre nesta intimidade em conversas descontraídas, bebendo com amigos ou em pacatas reuniões familiares com senhoras de meia idade. E aí que o perigoso caldo de cultura se torna claro. De início, a sensação é, e não poderia deixar de ser, de medo e de desamparo. A resposta emocional do animal acuado é menos informada pela cultura do que a sala de espera. E perigosamente mais verdadeira. A primeira constatação é de que a desqualificação dos valores também nos atingiu. "Quem é honesto é trouxa". Com a desculpa verdadeira de que nossos impostos são roubados e não trazem qualquer retorno, sentimo-nos desobrigados dessa imposição legal e a respeitamos apenas no limite em que não formos penalizados por isso. Se racionalmente defendemos os direitos humanos, tenho certeza que um plebiscito sobre a pena de morte teria uma aprovação esmagadora da população. Pena de morte e fechamento do congresso são as conversas sociais mais freqüentes em bucólicas festas de aniversários de crianças; Os repetidos massacres na periferia são, embora ninguém o confesse, vistos como "operação limpeza". A esperança é de que "os maus" acabem se matando uns aos outros. Nesse nível, desprezamos o atual governo e sua política de respeito aos direitos humanos. No fundo, nós nos envergonhamos de nossa postura passiva de pais que não colocam limites e sentimos desprezo quando vemos essa atitude reproduzida nas autoridades. Essa é a grande causa de rejeição de FHC. Na sala de espera sabemos que não é o responsável pelo desemprego e que está pagando o preço de seguidas administrações que tentaram resolver o problema inflacionário com mágicas ineficientes que colocaram inúmeros esqueletos no armário. Sabemos que o atual governo está desenterrando todos eles e pagando por isso. Mas, nós desprezamos a tibieza, que é nossa projeção. No fundo, respeitamos e admiramos os truculentos. ACM diante da bancada baiana defendendo um privilégio, Maluf cinicamente não respondendo qualquer pergunta são os verdadeiros heróis do interior colonial. A sua postura, inclusive, quando candidato à prefeitura de São Paulo, na última eleição, comprova que eu não sou o único que sabe da existência de interior colonial do Ser Humano. O candidato estava inferiorizado em todas as pesquisas. Para tentar reverter as tendências do eleitorado, apostou em duas coisas. Primeiro no medo ao partido oponente, apontado como o causador do caos. Daí a insistência em despersonalizar a candidata, atribuindo-lhe um sobrenome: "Dona Marta do PT". A segunda aposta foi no interior colonial dos eleitores. Um projeto de lei, assinado pela oponente, que propunha a diminuição de pena em troca de dias de estudo, foi apresentado como lesivo à nação, como 93% da população carcerária é não alfabetizada ou pouquíssimo alfabetizada, isto é, sabe apenas escrever o próprio nome. É óbvio que educação, a falta dela, é um dos componentes etiológicos da criminalidade. Combatê-la é fundamental em qualquer trabalho preventivo. Apresentar esta proposta como lesiva aos "homens de bem" e propor como saída a prisão perpétua, embora não seja de sua alçada, mostra que o candidato sabia com quem estava falando. A técnica nazista de repetir uma inverdade exaustivamente foi usada com competência. Dona Marta disse ter uma vez experimentado maconha. Disse também não ter gostado da experiência. Exaustivamente foi repetido que sua eleição abriria as portas das escolas para a droga. Se ela tivesse confessado que há cinco anos comeu jiló e não gostou, a técnica nazista seria acusá-la de ser uma vegetariana e sua eleição abriria as portas para a importação ilegal de soja transgênica. E repetir este sofisma até que ele fosse aceito como verdadeiro, especialmente por quem não sabe o significado de transgênico. As insinuações sobre a vida pessoal da oponente partiam do princípio machista que homens e mulheres não têm direitos iguais. Os homens têm mais direitos. Quando ele chama a sua esposa de "Silvia, a mulher de um homem só", nem de longe se pergunta sobre se ele é homem de uma mulher só. Se não for, tem direito. Afinal ele é homem. Temo estar dando ao leitor a impressão de que eu acho o Dr. Paulo Maluf um truculento nazista e machista. Não. Não seria justo da minha parte. Não o conheço pessoalmente. Ele pode ser um pai extremoso, um marido presente e fiel, um democrata preocupado com o futuro da nação, lutando por seu espaço político para servir a pátria. O papel que ele representou foi o de truculento. Ou ele o é. Afinal ele tem o "phisique du role" e interpreta o papel muito bem e há muito tempo. Mas eu não sei se ele o é. O que eu sei é que eu sou assim. Um pedaço de mim é nazista e machista. E é com esse pedaço que eu preciso lidar. Sei também que ele teve mais de dois milhões de votos. Parte deles anti PT 2002. Outra parte pelo discurso do candidato. Este pedaço nosso rejeita o presidente. Conscientemente nos orgulhamos do líder poliglota que lidera a formação do Mercosul e o chamamos de ponderado. No nosso interior colonial, condenamos o negociador que não confronta ninguém, do ACM ao MST, em quem nós sintetizamos nosso desamparo. E o chamamos de "frouxo". Estamos desprotegidos, não temos defensores. Cheios de medo e de ódio, acreditando na lei apenas no nível consciente, sem assumirmos nossa parte de responsabilidade pelo estado atual das coisas, somos um caldo de cultura perigoso. Estamos prontos para contribuir para o rompimento do tecido social. Em qualquer conversa é evidente o desejo de que morra o assaltante que nos humilhou. Felizmente fomos desarmados. Fomos mesmo? O contigente da guarda pessoal em São Paulo já é maior do que o da PM. O que falta para que os "homens de bem" percebam que têm um exército e o coloquem em ação? Temo que o ponto de reversibilidade já tenha sido ultrapassado. Mesmo que isso não tenha ocorrido, a manutenção desta falsa dicotomia, ou educamos ou reprimimos manterá nossas tíbias autoridades paralisadas e elas só entenderão que precisam agir quando já for tarde demais. Se já não o for.

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