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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O Brasil é de Jesus

Os novos feriados eram religiosos: o Dia da Bíblia, a Festa do Dízimo. Aboliu-se o Carnaval

Atualização:

Era inevitável, e os números anunciavam o processo havia décadas. O censo indicava, a cada novo levantamento, o encolhimento da parcela de católicos. Sim, a religião oficial da Colônia e do Império não cessava de perder a fatia demográfica dominante. O Brasil era, ano a ano, mais evangélico. O período de 2025 a 2035 foi decisivo. Pesquisas independentes revelaram que os católicos já estavam abaixo de 40%. O eleitorado evangélico cerrou seus votos nos candidatos exclusivos das igrejas reformadas. A virada no Congresso foi perto de 2032: 70 senadores declaravam-se ligados a alguma grande denominação pentecostal ou neopentecostal. Dois eram luteranos e um presbiteriano. Havia um ateu declarado. Poucos ainda se diziam católicos. O avanço numérico e político resultou em novas leis. O feriado de 12 de outubro foi mantido como o Dia da Criança Brasileira, mas não mais como a festa de Nossa Senhora Aparecida. Começou um movimento de reorientação geográfica. O Cabo de Santo Agostinho (PE) foi rebatizado como Cabo Só Jesus Salva. A cidade de Santa Maria (RS) tornou-se, em 2033, a Cidade do Evangelho. A batalha dos nomes foi mais forte em São Paulo. Por um tempo, dividiu-se o público entre os que chamavam de São Paulo e aqueles que diziam morar na cidade do Apóstolo Paulo. Por fim, a Câmara dos Vereadores aprovou a mudança em 2054, a tempo de comemorar o quinto centenário da metrópole.  O pastor Samuel de Oliveira e Silva foi eleito presidente pela aliança O Brasil é de Jesus. Sua vice era a bispa Francisca de Almeida. As verbas publicitárias corriam para a Rede Record; escasseavam na Globo e na Bandeirantes. As novelas bíblicas estavam cada vez mais elaboradas. Surgiu até um Big Brother da família cristã. O paredão era para quem tivesse praguejado ou se esquecido de orar.  As lojas elegantes de Ipanema, no Rio, ou da Oscar Freire, em São Paulo, passaram a vender a onda fashion evangélica. Aumentou a produção de ternos para homens. As roupas de praia passaram a utilizar mais tecido. Havia uma nova estética em ascensão.  O feriado católico de Corpus Christi virou o Dia Nacional da Marcha com Jesus. As ruas de todo o País foram tomadas de entusiasmados manifestantes. Em todos os campos, a vitória evangélica era visível. Alguns aderiram por convicção pessoal. Outros, especialmente políticos e empresários, entenderam que votos e verbas eram mais fáceis com participação em cultos. Como na vitória do Cristianismo, no Império Romano, a nova crença crescia nos corações, nos cérebros e nos bolsos. 

'Jesus e Maria Madalena', pintura de Antonio Correggio; livro de Amélie Nothomb diz que o Redentor queria fugir com sua amada Foto: Reprodução

A bispa que era vice do presidente Samuel foi eleita após os dois mandatos do pastor. Surgiu uma constituinte, e o Brasil foi declarado oficialmente cristão. Quebrava-se o verniz da laicidade do Estado que a República tinha tentado. Os novos feriados nacionais eram religiosos: o Dia da Bíblia, o da Família Cristã e a Festa do Dízimo. Aboliu-se o Carnaval, substituído por uma animada micareta de salmos. O Galo da Madrugada, no Recife, anunciava que Pernambuco também era de Jesus. Foi instaurado o concurso nacional de versículos. Ganhava o aluno do Ensino Fundamental que mais soubesse passagens de cor. Versão João Ferreira de Almeida, claro! A mudança universitária foi rápida. Sendo porta de acesso à função de pastor, o curso de Teologia tornou-se o mais procurado. Em 2040, havia mais candidatos por vaga na USP, para o Instituto Teológico da Universidade de São Paulo, criado cinco anos antes, do que para Medicina ou Engenharia Mecatrônica.  Grandes igrejas católicas iam sendo adaptadas para o culto evangélico. Foi comemorado o dia em que a Catedral da Sé, de São Paulo, virou um novo Templo de Salomão. A basílica de Aparecida removeu as obras do artista Cláudio Pastro e transformou-se na Igreja da Família Evangélica.  O mundo artístico tinha mudado. Anitta tornou-se militante da Assembleia de Deus; seus shows com vestido preto comprido cantando louvores eram emocionantes. Pablo Vittar era, agora, Apóstolo Rodrigues da Silva. Seus depoimentos de como tinha encontrado Jesus a caminho de Campinas bombavam nas redes. Ele havia sido derrubado da garupa de uma moto e ficado cego com uma luz intensa. Batizado, recuperou a visão. O TikTok era de louvores, apenas.  O turismo passou a conviver com novos roteiros como “a caminhada de Abraão”, que ia de Parati a Tiradentes – a pé. No caminho, encenações do sacrifício de Isaac e do encontro com Melquisedeque. As pousadas bíblicas, todas familiares, exigiam o certificado de casamento para hospedar um homem e uma mulher no mesmo quarto.  Não seria completo este relato histórico se eu não falasse do que ocorreu comigo. Após uma vida de ateísmo, aceitei ser batizado na Igreja Deus é Amor. A cena foi televisionada e alcançou muito ibope. Emergi das águas transformado e passando a rodar o Brasil, narrando a mudança. Agora, aos 75 anos, percorro a nova Terra de Santa Cruz, sempre dando o testemunho como um João que viu um novo Céu e uma Nova Terra. Minha piedosa leitora e meu piedoso leitor: minha breve ficção produziu esperança ou medo em você? É utopia profética ou distopia? Sonho ou pesadelo? Bem, tente viver mais alguns anos e seja feliz. Amém! * LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal
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