O baú de Fitzgerald

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colunista convidado
Por Sérgio Augusto
Atualização:

Há um novo conto de F. Scott Fitzgerald na praça. Inédito até a semana passada, Temperature só chegou ao conhecimento público nas páginas de uma publicação literária que nunca encontrei à venda por estas bandas, a revista Strand, editada pela homônima livraria de Nova York, 11 dólares o exemplar. Dado como perdido e em algumas bibliografias de Fitzgerald consignado com o título de The Women in the House, tem 8.000 palavras, foi escrito em julho de 1939 e recusado na época pelo semanário Saturday Evening Post. O editor da Strand o encontrou no início deste ano entre os manuscritos do escritor arquivados na Universidade Princeton. O baú de Fitzgerald não parece ter fundo. Três anos atrás, a New Yorker desencavou outra narrativa curta, Thank You For the Light, não dos arcanos de Princeton, mas de suas próprias catacumbas. A revista a rejeitara em 1936. O segundo ato que o escritor dizia não existir na vida dos americanos afinal lhe deu o ar da graça. Postumamente. Com dividendos. Uma ruína humana ao morrer no ostracismo, em dezembro de 1940, com 44 anos de idade, Fitzgerald ressurgiu das cinzas nas décadas seguintes, como autor (só O Grande Gatsby, para muitos o maior romance americano do século 20, já rendeu cinco filmes, um drama radiofônico e um espetáculo na Broadway) e como personagem (na comédia de Woody Allen Meia-noite em Paris e na telessérie Boardwalk Empire).  Se continuasse esquecido ou apenas vagamente lembrado, a morte recente de sua derradeira secretária talvez tivesse passado inteiramente despercebida pelos jornais. Pois é, Frances Kroll Ring, assistente e factotum do velho Scott nos últimos 26 meses de vida do escritor, se foi em junho, aos 99 anos. Jovem judia do Bronx, Frances datilografava os manuscritos do patrão, fazia-lhe a comida e arrumava-lhe a casa, além de patrulhar sua dipsomania. Acompanhou toda a criação de O Último Magnata e nem de uma cantada do escritor, pelo visto vidrado em secretárias, guardou ressentimento. Se guardou, não o revelou em seu livro de memórias, Against the Current.  Voltando ao conto exumado pela Strand. Parece um esboço ou uma tangente satírica de O Último Magnata, inacabado romance de Fitzgerald, com o escalão de baixo em primeiro plano. Seu protagonista não é um tycoon de Hollywood, outro Monroe Stahr, mas um desencantado roteirista de 31 anos, beberrão e com problemas cardíacos, chamado Emmet Monsen, “bonitão e fotogênico”, como Fitzgerald fora na juventude, e autodestrutivo, como o escritor foi até o fim da linha. Em seus dois últimos anos de vida e Hollywood, Fitzgerald esforçou-se como nunca para superar o alcoolismo e conseguir escrever os contos que, bem ou mal, lhe serviam de sustento - e terminar O Último Magnata. Os produtores não lhe faziam mais encomendas, apenas o humilhavam; seu cachê nas revistas em que habitualmente colaborava caíra a níveis quase obscenos; imagine o impacto que a recusa do fiel Post a publicar Temperature teve sobre o seu combalido coração. Seu esteio profissional, naquele período, foi Arnold Gingrich, editor da revista Esquire, sempre receptivo às suas sugestões, embora também as remunerasse muito abaixo da tabela antiga. Mas era o que havia e Fitzgerald, além de teso, necessitava de um espaço onde pudesse se reinventar como ficcionista, de olho numa faixa de leitores mais jovens, supostamente mais afeitos a relatos cômicos, na linha de, por exemplo, As Costas do Camelo, um dos Seis Contos da Era do Jazz, e eventualmente interessados nos apertos que ele passara e continuava passando na indústria de filmes. Foi Gingrich quem perfilhou uma série de histórias ligeiras protagonizadas por outro alter ego de Fitzgerald, o desastrado e nostálgico roteirista Pat Hobby (herdeiro direto, só agora descobrimos, do Emmet Monsen de Temperature), cujas trapalhadas renderam 17 episódios, que continuaram sendo publicados até cinco meses depois da morte do escritor. O primeiro, O Pedido de Natal de Pat Hobby, saiu na Esquire de janeiro de 1940. A coletânea completa custa pouco mais de um dólar na versão kindle. Meia dúzia de anos mais velho que Fitzgerald e com vários de seus defeitos e limitações - além do vício da bebida -, Pat é quase um cinquentão quando somos introduzido à sua patética figura. Também vivera intensamente a época áurea do cinema americano, assinara um monte de roteiros (ao contrário de Fitzgerald, que em três passagens por Hollywood só conseguiu crédito por uma adaptação do romance de Erich Maria Remarque Três Camaradas), chegou a ganhar 2.000 dólares por semana, com contrato assinado. Depois, virou um misto de Norma Desmond com o personagem de Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão e o autobiográfico outsider do conto Crazy Sunday, obrigado a se esfalfar, rastejar, meter-se em trapaças e vigarices para descolar 250 dólares por um trabalho mercenário qualquer.  Qualquer mesmo. O que pintasse, ele pegava. Foi até guia turístico às mansões de Beverly Hills. Fez bico como figurante, adotou uma barba postiça para ficar parecido com o recém-chegado Orson Welles. Sem maiores ambições, sobreviver era o seu limite. Quebrando um galho aqui, outro ali, apostando em vão nas barbadas que lhe oferecia o bookmaker Louie, paquerando secretárias e continuístas, contrabandeando lampejos alheios para ganhar pontos com o produtor Jack Berners, assim Pat Hobby ia levando. Sem teto, dormia no estúdio, comia o que sobrava das refeições servidas durante as filmagens e se locomovia num carro velho que pertencia a uma financeira.  Só duas peripécias desse pitoresco e paródico personagem - A Patriotic Short (Um Conto Patriótico) e Two Old-Timers (Os Saudosistas) - foram traduzidas no Brasil. Ambas fazem parte do adendo ficcional à edição de A Derrocada (The Crack-Up), editada pela Civilização Brasileira, hoje só encontrável em sebos. Não são as melhores histórias da série, mas a primeira delas, com o roteirista convocado às pressas para dar novo rumo a um bangue-bangue ambientado na Guerra Civil, tendo como herói um confederado, entrou para os anais por estar nas bancas justo no dia em que Fitzgerald caiu duro na sala de sua casa, em Los Angeles, fulminado por um enfarte.

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