Nydia Licia reúne suas memórias em livro

Elegância e sensibilidade marcam a narrativa de Ninguém se Livra de Seus Fantasmas, que a atriz, diretora e empresária lança hoje à noite, na Livraria Cultura

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Por Agencia Estado
Atualização:

Mestra de interpretação de texto na Escola Célia Helena, a atriz Nydia Licia pode ser vista atualmente também nas telas do cinema, no papel da mãe do protagonista do filme O Príncipe, de Ugo Giorgetti. E hoje à noite, ela estará na Livraria Cultura autografando seu livro Nydia Licia, Ninguém se Livra de Seus Fantasmas, numa belíssima edição da Perspectiva - além de dezenas de fotos emblemáticas de sua carreira, em cada página há uma espécie de rodapé com flagrantes de cena ou closes de olhares, expressões e gestos da atriz em diferentes palcos. Um livro cuja leitura acaba por revelar - ainda que não tenha sido a sua intenção - como e por que a atriz conseguiu, ao longo de sua vida, passar ao largo da degradação ética e cultural (muito bem) retratada no filme de Giorgetti. Nydia Licia começa sua narrativa por uma viagem realizada em 1970, na companhia de seu marido, o ator Sérgio Cardoso, e da filha do casal, Sylvia, pela estrada litorânea que os leva a Trieste, na Itália, sua cidade natal. "Sérgio guiava, com aquele jeito distraído que o fazia engatar a terceira para dar a partida ou, então, percorrer centenas de metros com o motor implorando por uma mudança de marcha", escreve. No dia seguinte da chegada a Trieste vai visitar a casa de sua infância, da qual saíra em 1939, quando sua família de origem judaica fora obrigada a deixar a Itália de Mussolini rumo ao Brasil. Num curtíssimo passeio pelo quintal da casa, "a roda do tempo" começa a "girar ao contrário" e, antes que o leitor tenha tempo de se dar conta da intenção da autora, em duas ou três frases ela volta a ser uma menina de 2 anos que, pela primeira vez, ficou acordada até mais tarde, com o irmão Lívio, numa reunião familiar. A partir daí tem início uma narrativa elegante, sóbria, sensível e inteligente, capaz de fascinar não somente os amantes do teatro, mas a qualquer leitor aficcionado por memórias. Tanto que o talento da narradora surpreende o editor J. Guinsburg e o crítico Sábato Magaldi, autores respectivamente da orelha e do prefácio do volume - não por qualquer dúvida quanto à consistência de sua trajetória, evidentemente, mas pela qualidade e força da narrativa dessa "autora de primeira viagem". Além de uma "elegância de alma" que é coisa nata, a explicação para tal domínio da palavra pode ser encontrada nessa primeira parte do volume, quando a atriz fala de sua sólida formação cultural. A primeira ópera - uma ópera-bufa com texto de Goldoni - ela assistiu na companhia da mãe aos 3 anos. Richard Wagner, o preferido da mãe, foi o compositor que marcou a infância. "Antes de cada espetáculo, elas nos fazia um resumo do enredo", ilustrado com desenhos. "O estímulo à fantasia é muito importante", comenta Nydia Licia em entrevista ao Estado. "Aqueles desenhos eram muito úteis. A cultura era transmitida com simplicidade, como uma brincadeira. E se não for assim, não interessa, corre o risco de virar uma chatice." Especialmente interessante, nessa primeira parte, é a forma como Nydia mostra a aceitação do fascismo no primeiro momento de sua instalação. "Nós fomos educados dentro daquilo, o grande bicho-papão era o comunismo. E o anti-semitismo custou a chegar. Veio importado da Alemanha, não fazia parte da nossa cultura em Trieste e o povo não aceitou. Só nos demos conta do que aquele regime representava quando fomos atingidos diretamente." Nydia credita ainda o apoio que a família recebeu à cultura de Trieste, característica de cidades portuárias. "Havia na cidade uma intensa circulação de estrangeiros, gregos, iugoslavos, austríacos... A convivência de raças e nacionalidades sempre produz uma cultura diferente, mais aberta, tolerante e rica." O volume é integrado por sete grandes capítulos que foram escritos ao longo de uma dezena de anos. "Fui escrevendo muito devagarinho. A idéia inicial era escrever só a primeira parte, para os meus netos", conta. "Mas os amigos cobravam a fase do TBC. Terminada esta, cobraram a companhia Nydia Licia-Sérgio Cardoso e, assim, aos poucos, fui adiante." Felizmente, a edição caseira e despretensiosa dessas memórias caiu nas mãos de Sábato Magaldi e, em conseqüência, do atento editor J. Guinsburg. "O livro ficou lindo", comemora Nydia. E o teatro brasileiro ganhou mais um documento de grande importância. Como observa J. Guinsburg na orelha do volume, há um momento na história do teatro brasileiro que parece, aos olhos de hoje, quase lendário. "Uma espécie de idade de ouro", na "Paulicéia após-guerra". Nydia não só vivenciou esse momento, como narra suas experiências com a mesma aparente simplicidade com que sua mãe explicava as óperas de Wagner. Nada de grandiloqüências ou nostalgia. Com notável memória, recria "climas" de noites de ensaio, processos de criação de personagens ou espetáculos, desde suas primeiras experiências com o Grupo Experimental de Teatro, dirigido por Alfredo Mesquita, passando pela fase de formação do TBC, até a longa luta pela fundação e manutenção do Teatro Bela Vista, hoje Teatro Sérgio Cardoso. Vale ressaltar a generosidade com que a atriz narra o processo de criação de companheiros de trabalho, propiciando ao leitor um amplo leque de informações, muito além de sua trajetória pessoal. De Procópio Ferreira e Dulcina de Moraes a Cacilda Becker, Nydia consegue iluminar aspectos da personalidade de diferentes gerações de atores e também diretores. Surpreende ainda a defesa lúcida do empresário Franco Zampari ao narrar como ele impediu que ela e Sérgio Cardoso fizessem um estágio na Europa na companhia de ninguém menos do que Jean-Louis Barrault. O convite foi feito por Barrault, que excursionava pelo Brasil. Como atriz, diretora e empresária, Nydia Licia vivenciou conquistas e turbulências, sucessos e fracassos. Em sua narrativa, ora explora o detalhe, ora faz uma reflexão distanciada. "A memória é seletiva", explica. Mas nada parece aleatório em sua seleção. Num livro criado "devagarinho", a autora certamente procurou ângulos dessas memórias que pudessem iluminar passado e presente, sem jamais cair no saudosismo ou na tentação das "revelações" pessoais. Nesses tempos de ruidosos "eventos"-relâmpago, a elegância de Nydia Licia é mais que bem-vinda, é necessária.

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