
05 de dezembro de 2012 | 02h10
Vimos com clareza quem atuou ou não, e percebemos a impossibilidade de julgar um ex-patrão ou os amigos. Entendemos por que o liberalismo inventou a fórmula ética chamada "conflito de interesse". A consciência dos papéis sociais, de que falava, entre outros, Shakespeare, com a terrível clareza da tragédia, mostra isso. Só há duas possibilidades: ou o papel comanda a pessoa ou a pessoa comanda o papel. Se houver um conflito entre a pessoa e o papel, não pode haver desempenho porque não há convicção - essa dimensão básica da ética que dispensa a polícia e a censura porque ela se enraíza na difícil capacidade de dizer não a si mesmo demandado pela democracia.
O julgamento engendrou, por outro lado, heróis. Um deles foi o procurador-geral da República. Outro foi o relator. Ele permitiu testemunhar o desmonte de um projeto de poder contrário à democracia e à condenação daqueles que - aristocraticamente - se imaginavam acima da lei por terem um certa biografia e professarem uma certa visão de mundo.
Hoje estamos lendo tudo sobre os "livros" que, na linguagem de Rose Noronha e dos seus asseclas, eram uma metáfora para os favores obtidos graças às tramas pessoais e partidárias.
A barganha de cargos do Estado mostra como os intérpretes do Brasil estavam enganados. Todos falam da oposição entre oprimidos e opressores, entre exploradores e explorados, entre senhores e escravos quando, de fato, o que se assiste ao longo da história é um contraste assombroso entre governantes e governados. Aqueles como donos do Estado por meio de um governo; estes pagando seus escritórios, motoristas, secretários, cartões corporativos, namoradas, ilhas da fantasia, obras, grandes cagadas, viagens, massagens, passaportes diplomáticos - o c... a quatro! - com o seu trabalho e impostos.
Nossa paixão pelo estado imperial e definitivo é tão grande que conseguimos inventar dentro do capitalismo o segmento dos "empreendedores oficiais". Os que por meio de suas relações usam os cargos públicos sem seguir a ética pública. Assim, em vez de empregarem seus cargos para aprimorar o setor pelo qual são responsáveis, eles os usam para "se arrumar". O familismo, o personalismo, as amizades, a simpatia e, hoje em dia, o partidarismo, ajudam a criar fortunas. Tudo, menos o mérito, os resultados e a competência, passa a ser a norma dos governos que cometem a perversão de opor de modo radical os que pagam os impostos - nós, os governados; e eles, os governantes, que tudo podem porque estão acima da lei.
Quando dona Rosemary Noronha diz que nada fez de errado, ela está falando a verdade. E quando nos indignamos com a quadrilha da qual ela era o centro, nós também estamos com a verdade. Todos descobrimos, sem termos lido Fernando Pessoa, essa dupla existência da verdade porque um dos dados da era "lulo-petista" é a revelação de uma ética dupla que, faz tempo, acentuei no livro Carnavais, Malandros e Heróis como sendo o traço capital do sistema brasileiro. Sempre tivemos uma norma moral interna para a "casa"; e outra, externa, para o povo governado tido como pobre ou pateta, que na "rua" ganha a "bolsa idiotice" e se conforma com uma ocupação predatória do Estado por um governo cujo centro é um projeto de poder.
Dir-se-ia que chovo no molhado. Mas, vejam bem: num mundo social com uma ética para os amigos e outra para os estranhos os dois lados estão absolutamente corretos. É precisamente por isso que há impunidade. Não é a impunidade que leva ao abuso do cargo público. É o fato de jamais termos enfrentado o problema das demandas pessoais face às exigências dos cargos públicos num sistema igualitário ou republicano que leva à impunidade. Quando o STF confrontou pessoas com projetos políticos e cargos, houve condenação.
Imagine o que aconteceria se você, eleito presidente, não contemplasse seu cunhado com uma agência reguladora? Como não indicar, nomear ou pedir um favor quando a ética da amizade diz que é exatamente assim que devemos proceder? Rose está correta. Se eu sigo uma ética que engloba a morte, eu mato; se ela legitima o "tirar partido" de uma relação e um cargo, eu peço. Why not?
Se jamais politizamos a desagradável separação (e o limite) entre o cargo público com suas obrigações e os seus eventuais ocupantes, que, dentro dele procedem como se fossem seus donos, o resultado só pode ser o que traduzimos como escândalo ou corrupção. A indicação "de cima" - do PR ou do JD - como diz Rosemary - permite tudo. É como produzir uma peça de teatro escolhendo os atores pelas suas relações com o dono do teatro e não com as exigências do papel. Aí está o óbvio ululante que ninguém quer ver.
O desequilíbrio entre ator e papel resulta nesse fracasso retumbante de tudo o que vem do governo por oposição a tudo que nasce na sociedade. Em todos os lugares onde se buscou a igualdade de todos perante a lei, a separação de pessoas e papéis públicos realizou-se de modo dramático. Foi uma tarefa revolucionária, como tanto gosta o anglo-eurocentrismo e a vulgata marxista. No Brasil, só agora começamos a perceber que não há a menor chance de mudança para uma sociedade igualitária, se não tivermos a coragem de adequar pessoas aos papéis públicos que elas eventualmente ocupem.
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