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Nunca fomos tão vizinhos

Todos já nos conhecíamos. Mas nunca tínhamos passado tanto tempo no mesmo lugar

Por Humberto Werneck
Atualização:

Nunca fomos tão vizinhos quanto agora. Vamos ver se consigo debulhar esta reflexão que hoje me ocorreu, efeito colateral da pandemia do coronavírus, o mais recente artigo chinês, dizem os mal informados, de que nos tornamos consumidores e por vezes, lamentavelmente, difusores. 

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Por favor, não vá pensar que este cronista, mais que nunca à míngua de assunto – pois cronista que não sai à rua é tristeza em dobro –, se acha agora convertido em “coronista”, por força da incorporação de uma vogal suplementar. Se bem me lembro das aulas de português no colégio, teríamos aí um caso de palavra que em algum momento ganhou vogal retardatária, insinuada entre duas consoantes – como ocorreu, dizia o professor, com a barata, sim, esse horror provido de patas e de antenas, que antes se chamava “brata”. Impossível esquecer o mestre a explicar que o fenômeno se chama suarabácti, esquisitice originária do sânscrito significando “separação por meio de vogal”. Para você ver como anda feia a coisa: talvez seja a primeira vez que suarabácti comparece numa crônica, com o risco de torná-la “corônica”. Mais um efeito colateral, quem sabe, da tal covid-19, que no Brasil veio somar-se a outro flagelo, também devastador, essa covid-17 de que sofremos desde as eleições passadas. * Mas retomemos a tentativa de explicar a frase com que abri esta conversa. A gente sabia, é claro, que outras pessoas moravam no prédio, mas com certeza não estavam nele o tempo todo, como ocorre desde que se adotou isolamento horizontal em edificações verticais. A maioria, que em algum momento do dia se mandava para o mundo, agora não arreda pé – pé esse, por sinal, metido em algum tipo de chinelo. E não falo só de pés-rapados. Dia desses, um querido amigo mandou pelo WhatsApp uma foto em que é visto, na sala de sua mansão, usando máscara antivírus e vestindo elegante bata negra – e, para meu pasmo, usando Havaianas. Havaianas, ele! Nossa camaradagem está para completar 40 anos, mas é provavelmente a primeira vez que o vejo com os pés acondicionados em algo que não sejam tênis os mais refinados, ou em sapatos de cromo no mínimo alemão. Para lembrar de novo o que dizia meu finado pai, a pandemia nos precipitou a todos num “rascunho danado”. 

Todos – ou quase todos, pois em qualquer parte, claro, até mesmo aqui no modesto condomínio Cosme e Damião, tem sempre uns afortunados que, desencadeada a pandemia, foram se refugiar no sítio; já para quem ficou, o panorama é quase de um estado de sítio. Agora trombamos uns nos outros nas 24 horas do dia. Distribuídos por dois pequenos blocos de três andares, no total de 12 apartamentos, chegaremos talvez a isso que temos visto na televisão, condôminos a comemorar aniversário de alguém no prédio em frente. Não seria má ideia. No caso dos avulsos, entre os quais me incluo, em breve haverá o espetáculo de cabeleiras carentes de tesoura. Mas antes isso que chegar àquela situação em que os cabelos param de crescer.

Não tardamos a distinguir quem de nós pilota seu fogão e quem recorre ao delivery, seja ele culinário ou gastronômico. O citado camarada da bata negra com Havaianas (fica a sugestão, querido Ronaldo Fraga), morador nas imediações, fez outro dia a maldade de atiçar a minha inveja com uma foto de mesa posta no capricho, sobre a qual fumegavam iguarias mandadas vir de um dos mais constelados restaurantes dos Jardins. Você pode imaginar a dureza que foi, em seguida, encarar minha omelete com lascas de frango remanescentes de duas ou mais refeições. * Não posso me queixar, bem ao contrário, dos vizinhos que tenho ou tive aqui no Cosme e Damião, no qual cheguei há 27 anos e onde sou, de longe, o decano. Onde não sou o decano, aliás, depois que se foram o Niemeyer e a dona Canô? Se ainda não me animei (quem sabe na próxima pandemia?) a escrever um livro intitulado Meus Vizinhos, não é por falta de bons personagens, alguns dos quais por mim tratados no varejo das crônicas. 

O Antônio, para começar, antigo zelador residente, figurinha miúda desprovida de praticamente todos os dentes, mas dotado de invulgar talento para fuçar na intimidade alheia. Nos moldes das folclóricas concièrges da Paris de antigamente, estava inteirado da vida de cada um dos moradores do condomínio. Abelhudo, em mais de uma ocasião me chamou de lado para louvar os feitos galantes de um rapaz cujo apartamento era de fato um entra e sai de moças bonitas. “Ontem foram duas!”, fuxicava o zelador, olhinhos brilhando e a boca desdentada se esbugalhando em admiração: “Duas no mesmo dia!”. 

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A mesma fonte, sem que eu perguntasse, me contou que o médico da janela em frente à minha, bigodudo e mal-encarado, de cabelos pintados com um negro de dar inveja à graúna, tinha uma relação mais que patronal com sua diarista, a qual, na realidade, ajudava a desfazer a cama que ela própria arrumava. Não é que o mexeriqueiro estava certo? Ainda que não quisesse, ao chegar-me à janela era impossível não ver o casal, que já não mora aqui, a fumar diante da televisão, dois pares de chinelos Rider pousados na mesa de centro. Às vezes as cortinas se fechavam repentinamente, e lá de dentro escapavam rumores inequívocos de atividade corporal específica. Tudo muito rápido, no breve espaço, quase, de um comercial, antes que as cortinas fossem reabertas e mais cigarros acesos. 

Foi o Antônio quem me ajudou a identificar a minha Vizinha Erótica – autora, sob pseudônimo inglesado, de um conto que me tocou ler quando redator-chefe da Playboy, em cujas 8 laudas e tipos miúdos se espremiam todas as modalidades imagináveis de entreveros carnais – nada daquilo, porém, capaz de remotamente atiçar a lubricidade de quem lesse. Com boa vontade, funcionaria como manual de instruções em academia de ginástica. 

Já contei da surpresa que tive ao emergir da leitura e me deparar, no verso do envelope, sob o nome brasileiríssimo da remetente, com o endereço do meu condomínio. Dissimulado, botei o Antônio para enumerar os moradores do condomínio – e foi assim que soube que a Vizinha Erótica era uma senhora recatadíssima, para lá de outoniça, às voltas com a educação e manutenção de dois sobrinhos órfãos (além de metaleiros). A santa criatura estava, cochichou o Antônio, até vendendo os móveis – e então não houve como não visualizar a cena de um sofá saindo e a dona Geni, sem outra alternativa financeira, a se meter na pele de uma devassa Jennifer O’Hara, para um esforço de imaginação (ou terá sido de memória?) lúbrica. Felizmente se mudou daqui sem ter vivido o constrangimento de saber que o único leitor de seu x-tudo libertino estava bem ao lado.

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