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Novo Begley reflete sobre paz e morte

Despedida em Veneza conta a história de um homem que, a beira da morte, viaja para Veneza a fim de se livrar das irritações de sua rotina, oferecendo uma reflexão íntima e branda sobre a natureza humana

Por Agencia Estado
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Um olhar sobre o tempo e a finitude - Thomas Mistler recebe uma terrível notícia: tem câncer no fígado. O tumor é ainda pequeno, mas pode estar ramificado por estranhos lugares em seu corpo. A extensão do mal só pode ser descoberta em uma cirurgia. Mistler sente-se só, apesar de casado e com um filho adulto. Não é uma situação agradável para quem se notabilizou pela auto-suficiência, um vencedor acostumado às batalhas do mundo publicitário de Nova York. "Como não está habituado com nada que prejudique sua independência, ele decide ir a Veneza, o único lugar do mundo onde nada o irritava", conta Louis Begley em entrevista à Agência Estado. "Piedade e autopiedade não lhe dizem nada." A decisão de Mistler é o ponto de partida de Despedida em Veneza, a mais recente obra de Begley. Pungente, reflexivo, o livro narra a história de um homem que se despede das misérias e prazeres que "negociou" para si ao longo da vida. Não se trata de uma literatura piedosa, tampouco cruel - Begley mais uma vez oferece uma visão profundamente compreensiva da natureza humana. Com sua escrita elegante, entre perspicaz e terna, o autor construiu um romance duro, frio, um ato de prazer e morte, de encontro e adeus. Como em suas outras obras, o tempo desponta implacável, como um tormento infindável, distribuído ao acaso, mas sem deixar ninguém de fora. Louis Begley nasceu na Polônia, em 1933, quando foi registrado como Ludwik Begleiter. Trocou de nome quando emigrou para os Estados Unidos, depois da 2ª. Guerra Mundial. Formou-se em direito pela Universidade de Harvard, onde foi colega de classe do também escritor John Updike. Só estreou na literatura aos 57 anos, com o livro A Infância da Mentira, editado no Brasil, assim como o restante de sua obra, pela Companhia das Letras. Em tom confessional, conta a história de Maciek, um garoto judeu que, acompanhado de uma tia, Tânia, foge dos nazistas na Polônia. No livro seguinte, O Homem Que se Atrasava, Begley diminui o senso do perigo: Ben é um financista americano de sucesso, que esconde, porém, a memória de sua infância judia infeliz. Um e outro livro, na verdade, têm temas em comum, em que pesem as diferenças de tratamento e circunstância - o tempo e a passagem do tempo, a duplicidade e a divisão, a perda inexplicável de pessoas, afetos, sentidos. Ben é o homem que chega tarde demais nas principais questões de sua existência. Já em O Olhar de Max, seu terceiro romance, Begley elabora de outra perspectiva (um amor homossexual) os sentimentos abandonados e oportunidades desprezadas. Max relata o relacionamento de dois amigos, Charlie e Toby. Doente terminal Toby não entende por que seu parceiro foi poupado e tenta fazê-lo sentir-se culpado. A paixão é a grande educadora desses homens. Revelações e transformações só são possíveis sob a pressão dos afetos, que sempre chegam, no entanto, cedo demais ou tarde demais. Finalmente, Sobre Schmidt, último livro antes de Despedida em Veneza, trata do desagrado do personagem principal com o casamento de sua filha, Charlotte, com Riker, um jovem advogado judeu. Eis um amor difícil entre pai e filha, que faz menção ao Rei Lear, de Shakespeare. "Por isso, Schimdt foge de uma situação familiar insustentável e vai para o Brasil", conta Begley, em mais uma referência do País em sua obra, como conta na entrevista a seguir. Agência Estado - Comecemos por sua última obra: Thomas Mistler escolhe Veneza justamente por ser também uma cidade em agonia? Louis Begley - Talvez fosse algo que estivesse escondido em sua inconsciência. Conscientemente, no entanto, acredito que ele fez sua escolha por razões bem específicas: é a cidade onde nada o irrita (e você sabe como Mistler é uma pessoa de pouca paciência!). Ele não quer ser perturbado por pessoas que conhece uma vez que lá já esteve apenas a negócios. Também por se tratar de uma cidade que conhece bem e, portanto, não precisa ser tratado como um simples turista. E, cá entre nós, quem não gostaria de reter a bela imagem de Veneza, cintilando ao pôr- do-sol, antes que seus olhos se fechem para sempre? Por que todos seus livros tratam da morte? Porque a vida inevitavelmente vai terminar em morte e, por essa razão, a morte é um fator dominante na vida. Não se esqueça que nossa passagem por aqui sempre será acidentada. É por isso também que, em suas obras, as relações são marcadas por méritos e punições? Na verdade, estou mais interessado em justiça e injustiça. O que me parece é que punições horríveis normalmente são aplicadas a pessoas que não as merecem. E por que isso acontece? É uma questão que sempre me persegue, na vida e nos meus livros. Em Despedida em Veneza, Mistler busca também a juventude renovadora de uma fotógrafa ousada. O sr. acredita que há uma nova tendência literária, na qual o adultério não é uma ameaça moral, mas uma real possibilidade de uma nova forma de intimidade? Não sei se se trata de uma tendência literária, mas minhas observações confirmam que: (A) um adultério discreto não é uma ameaça moral, segundo minhas noções de moralidade; e (B) o adultério entre as pessoas que o cometem resulta em um tipo especial de intimidade inigualável. Aliás, sempre acreditei que a verdadeira relação de amizade entre um homem e uma mulher só é possível depois que ambos dormiram juntos. Despedida em Veneza lembra inevitavelmente Morte em Veneza, de Thomas Mann, e ainda um livro de Ernest Hemingway, Além do Rio, Por trás das Árvores. São livros similares? Há mais de 45 anos que não leio Além do Rio e pouco me lembro de sua história. Claro que admiro o trabalho de Hemingway, mas não tive intenção alguma de escrever uma história semelhante. Na verdade, eu tinha Morte em Veneza em meu pensamento quando escrevi a história de Mistler. E muito me diverte descobrir como a minha versão de uma morte em Veneza ficou bem diferente. Quando está lendo um romance, o leitor tem a tendência (e provavelmente o direito) de suspeitar que cada detalhe é significante, cuidadosamente escolhido pelo autor. O sr. pensa dessa forma, quando escreve seus livros? Certamente. Acho que a obra pertence ao leitor que, muitas vezes, descobre detalhes significantes que provavelmente o autor nem tinha pensado. O que o levou a dividir seu tempo entre a advocacia e a literatura? É uma história até engraçada. Quando meus amigos japoneses me perguntavam qual era meu passatempo, sempre respondia com a maior sinceridade: dormir. Nunca tive interesse por jogos ou qualquer tipo de esporte e dificilmente assisto à televisão, a não ser em momentos de crise nacional. Assim, um novo momento aconteceu quando comecei a escrever romances. Foi algo inesperado, assim como quem vai caminhando para fora da calçada sem notar. Uma vez que não tinha a intenção de abandonar minha atividade de advogado, nem de trabalhar menos (eu gosto do direito e sou supersticioso como uma mula, assim tenho medo que alguma mudança vá me trazer má sorte), limitei minha escrita aos fins de semana, o que implicou mudanças de hábitos. Quais mudanças foram mais significativas? Bem, comecei a fazer coisas agradáveis, como longas caminhadas até o fim de Manhattan para comer comida chinesa ou visitar determinados museus apenas com a intenção de notar certos detalhes de algum quadro que acabei inserindo em determinado parágrafo de algum livro. Com o tempo, percebi que a necessidade de escrever se tornou muito forte, uma questão de honra. Algo como o pânico de quem está aprendendo a nadar e pensa que vai afundar, por isso não pára um instante de mexer os braços e as pernas, cada vez mais rápido. Assim, não me deixei fazer grandes pausas entre um romance e outro. O que teria acontecido se eu tivesse feito? Teria esquecido como escreve? Prefiro não saber. As suas influências literárias são tão importantes como suas experiências reais? Acho que minhas experiências de vida são mais importantes que os livros que eu já tenha lido. Aliás, quais são suas principais influências na literatura? Não estou certo de ser particularmente influenciado por algum autor ou algum livro. É mais fácil falar sobre os escritores e as obras com os quais mais aprendi e que me provocam uma admiração única. Como Em Busca do Tempo Perdido, de Prost; toda a obra de Flaubert e Kafka; Henry James, em especial Pelos Olhos de Maise, Retrato de uma Senhora, As Asas da Pomba e A Taça de Ouro; algumas novelas de Joseph Conrad, particularmente O Agente Secreto e Under Western Eyes. Alguns de seus personagens, como Mistler e Ben, de O Homem Que se Atrasava, fogem para outros países quando as responsabilidades pessoais se tornam muito opressivas. Por quê? Ben realmente escapa, o que é, com justiça, um fenômeno comum naquelas circunstâncias. Mas não creio que Mistler fuja - ele apenas busca um lugar que não o irrite. O sr. já esteve algumas vezes no Brasil, país que é citado em duas de suas obras, O Homem Que se Atrasava e Sobre Schimdt. Há algo, no Brasil, que o atraia como inspiração? Não diria que há uma "influência brasileira". Na verdade, eu adoro seu país, onde fiz vários amigos e, portanto, foi imensamente prazeroso colocar o Brasil em meus livros. Adorei descrever o Rio de Janeiro, retratar a gentileza dos brasileiros, sua infinita boa índole e, claro, a beleza das mulheres. Em O Homem Que se Atrasava, escrevi que, à beira da piscina do hotel Copacabana Palace, meu protagonista tem a impressão de estar "em um aviário sem teto com pássaros falando em russo; esse era o som do português dos cariocas". E acrescento que são pássaros belos e gentis. Quando escrevi isso, pensava nos moleques do Rio. O sr. pensa em fazer nova citação do Brasil em uma obra futura? É possível. Se fizer isso, vou me lembrar do caos soberbo de São Paulo, com suas avenidas sem fim, a praça no antigo centro da cidade com seu mercado de flores. Comoveu-me a hospitalidade com que o Brasil aceitou, integrou à sua vida e transformou em cariocas e paulistas toda uma população de fugitivos de Hitler e das devastações da 2.ª Guerra. O cineasta Stanley Kubrick planejava filmar Infância da Mentira e haveria locações na Polônia, Hungria e Eslováquia. Nomes de atrizes como Uma Thurman, Jodie Foster e Julia Roberts foram cotados para o papel da tia de Maciek. Por que o projeto não vingou? Pelo que eu soube, Kubrick iniciou uma pré-produção, mas logo interrompeu ao saber que Steven Spielberg preparava A Lista de Schindler, que trata de um tema semelhante. Acho que Kubrick acreditou ser comercialmente difícil ter a produção que queria tendo Spielberg no horizonte. Mas, sei que ele planeja reassumir esse projeto se a morte não interrompesse sua carreira. Serviço - Despedida em Veneza. De Louis Begley. Companhia das Letras. 224 páginas. R$ 28,50

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