"Nove Rainhas", agora em vídeo

Filme comprova que o cinema latino de língua espanhola tem futuro. Expõe todo o mal-estar que consome os argentinos, levando às telas a história de pequenos golpistas

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Por Agencia Estado
Atualização:

Três ou quatro filmes de sucesso não configuram uma tendência, mas há tempos o cinema latino-americano não brilhava tanto nos cinemas brasileiros. Dois filmes da Argentina (Nove Rainhas e Plata Quemada) e dois do México (Amores Brutos e E Tua Mãe Também) convenceram o público de que, sim, o cinema latino tem futuro. Estamos falando do cinema latino de língua espanhola, mas o brasileiro também teve êxitos significativos, bastando citar Bicho de Sete Cabeças. Amores Brutos, de Alejandro González-IÏarrítu, pode não ser perfeito e realmente não é, com seu relato (em episódios) de tom apocalíptico e o desfecho despolitizado, mas possui raro impacto, E Tua Mãe Também conta uma história cheia de surpresas, mas o melhor desse filme é aquilo que ocorre à margem da imagem: os personagens seguem seu caminho pela estrada da vida e o que passa por eles, os incidentes que ficam sempre na lateral da cena, sem interferir na história do triângulo - um enterro, uma batida policial -, vão revelando uma imagem complexa e rica do México. É a maior sacada do roteiro escrito pelo próprio diretor Alfonso Cuarón. E houve, Plata Quemada, que Marcelo PyÏeiro adaptou do livro de Ricardo Piglia, um Bonnie & Clyde gay que subverte os cânones machistas da cultura latino-americana. Pode-se gostar mais desse ou daquele, mas são todos bons. E o que dizer, então, de Nove Rainhas? O filme do argentino Fabián Bielinsky permaneceu meses em cartaz em São Paulo. Ficou ainda mais atual com os eventos ocorridos esta semana na Argentina: a decretação do estado de sítio, a renúncia do czar da economia argentina, Domingo Cavallo. A Argentina, que sempre quis ser um enclave europeu na Amériva Latina, ingressou no século 21 com a trágica consciência de ser, para o pior, um país do Terceiro Mundo. Instabilidade social, miséria, incerteza. Nesse mundo à beira do caos, a grande luta é pela sobrevivência. A Argentina virou um país de trambiqueiros, é o que diz Bielinsky em seu filme. Nove Rainhas pode ser visto como o manual do pequeno golpista. Pequeno? Pois a verdade é que a surpreendente reviravolta final sugere uma habilidade que eleva os golpistas de Bielinsky bem acima do nível médio dos ´eternos desconhecidos´ que vivem de golpes nas grandes cidades da América Latina. Esse final brilhante chega a ser considerado esperto demais e vira o que, para alguns críticos, é o defeito do filme. Durante quase duas horas, o diretor expõe todo o mal-estar que consome os argentinos e, no fim, quase como num passe de mágica, resolve tudo num desfecho apaziguador, no qual fica claro que existem golpiastas do ´bem´ e do ´mal´ e que o coração do diretor está com os primeiros. É a história de Marcos e Juan, interpretados por Ricardo Danin e Gastón Pauls. Conhecem-se quando um deles vê o outro aplicar um golpe e resolve tomá-lo como sócio, já que precisa de um parceiro para uma atividade que se antecipa das mais promissoras. Bielinsky revela grande prazer em expor o inventário das artimanhas da dupla. Numa entrevista, na época da estréia, ele disse que se baseou em notícias de jornais. Tudo o que os personagens fazem tem respaldo na realidade. São golpes engenhosos e outros nem tanto, embora engenhoso mesmo seja o golpe final, sobre o qual se pode alimentar a expectativa sem entrar em detalhes que tirem a graça desse desfecho para o público que ainda não viu Nove Rainhas, apesar de todo o seu sucesso nos cinemas. Justamente o desfecho dá um novo sentido à arquitetura dramática do filme e aí é possível que você queira rever Nove Rainhas para conferir se não existem furos no roteiro - uma coisa que muitos espectadores fizeram com outro filme diferente, em técnica e estilo, mas que também tem um final inusitado: O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan. Ou seja: decorrido mais de um século de luzes, o cinema não esgotou sua capacidade de surpreender. Tanto isso é verdade que Nove Rainhas fez a melhor bilheteria do ano passado na Argentina e quarta maior da história do cinema no país. Foram 1,4 milhão de espectadores, o que nem parece exagerado em comparação com o mercado brasileiro, mas representa muito num país com cerca de 30 milhões de espectadores. Receita do sucesso - Boa parte do sucesso de Nove Rainhas decorre da engenhosidade do roteiro que o próprio diretor Bielinsky escreveu - e inscreveu num concurso promovido pela maior empresa produtora de cinema da Argentina, a Patagonik. O tal concurso previa que o roteiro vencedor viraria filme produzido pela empresa e ainda daria ao roteirista a opção de ser também o diretor. Bielinsky, que havia sido assistente de Eliseo Subiela, encarou o desafio. Nada mais diferente do que o estilo desses dois homens. Subiela, que fez Um Homem Olhando o Sudoeste e O Lado Escuro do Coração, pratica um cinema rico em metáforas e simbolismos e no qual a poesia, o erotismo e um elemento de realismo fantástico se combinam, com resultados densos. Bielinsky escreveu seu roteiro pensando num filme comercial, como opção estética, que fosse divertido e movimentado sem deixar de pôr na tela um testemunho sobre a Argentina atual. Ele conseguiu e, para isso, foi fundamental a participação dos atores. Darin e Pauls são ótimos e o segundo ainda tem aquela cara de bom moço, indispensável para o impacto da solução final que aproxima Nove Rainhas de Golpe de Mestre, o velho êxito de George Roy Hill com Paul Newman e Robert Redford, nos anos 70. E o filme ainda tem Leticia Bredice o sexo em estado puro. Leticia é uma deusa e letal. Quando ela caminha, com aquele corpo e aquelas pernas, o efeito sobre a platéia masculina é fulminante. Só com a esplêndida Monica Belucci de Malena, de Giuseppe Tornatore, o erotismo atingiu essa voltagem nas telas, no ano que se encerra. Serviço - Nove Rainhas (Nueve Reinas). Argentina, 2000. Direção de Julián Bielinsky. Distribuição Buena Vista. Em vídeo, nas locadoras

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