Nova edição de 'Três Tristes Tigres' lembra Cabrera Infante

Escritor cubano, ferrenho opositor de Fidel Castro, fala de uma Havana desaparecida depois da revolução

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O mais obstinado opositor de Fidel Castro não dá descanso ao ditador nem morto. Guillermo Cabrera Infante (1929-2005) está de volta, desta vez para provar que ainda não surgiu, em Cuba ou outro recanto da América Latina, um escritor capaz de rivalizar com ele, nem mesmo Roberto Bolaño (1953- 2003), atualmente em voga. O chileno era bom, mas, quando se relê o primeiro romance de Cabrera Infante, Três Tristes Tigres (1964), obra-prima irreverente e revolucionária, conclui-se que Bolaño não passou de aprendiz de feiticeiro. Três Tristes Tigres é o primeiro livro do escritor relançado pela editora José Olympio (trad. de Luis Carlos Cabral, 518 págs., R$ 69). Ainda faltam títulos essenciais fora de catálogo e outros inéditos (os ensaios sobre o filme Blade Runner e os póstumos Corpos Divinos, A Ninfa Inconstante). Mas já é um começo.

 

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Algum editor também poderia fazer a gentileza de colocar nas livrarias os roteiros de Cabrera Infante, entre eles o de Sob o Vulcão (Under the Volcano, 1972), escrito para o cineasta Joseph Losey. Ou o do filme cult Corrida contra o Destino (Vanishing Point), dirigido em 1971 por Richard C. Sarafian. Cabrera Infante teria preferido que fosse um filme "culto" em vez de cultuado, mas isso não seria possível com um diretor como Sarafian, que transformou a história trágica de um motorista numa tragédia de automóvel, a do Dodge Challenger 70 destruído na tela. Infante, grande crítico de cinema (leia texto de Sérgio Augusto na página 2), não deu muita sorte como roteirista. Outro roteiro seu massacrado foi o de O Muro das Maravilhas (Wonderwall, 1968), dirigido por Joe Massot. Infante odiava o filme, salvando apenas a pele do beatle George Harrison, que assinou a trilha sonora. No entanto, ganhou tanto dinheiro com ele que se mudou para um bom apartamento térreo em Gloucester Road.

 

Lá também morava Offenbach, o gato de Infante, morto em 1977, aos 10 anos, e enterrado no jardim da casa. Ele falava do bichano como se fala de um amigo. Gostava tanto dele como de Havana, sua cidade de adoção e personagem principal de Três Tristes Tigres, já comparado mais de uma vez, com justa razão, ao Ulisses de Joyce. Nele, não só os neologismos, mas trocadilhos, desenhos, páginas para serem lidas com espelho e, principalmente, as paródias de autores latinos por Cabrera Infante fazem de Três Tristes Tigres uma viagem mítica por Havana, essa Ítaca que lembrava Kaváfis e seu poema sobre as ilhas míticas espalhadas pelo mundo. O livro é uma elegia a essa Havana que o escritor conheceu na juventude, quando seus pais, fundadores do Partido Comunista Cubano, mudaram de Gibara para a capital cubana.

 

Infante também foi comunista. Experimentou a luz e a sombra por causa de sua ideologia. Foi até preso por ela, nos anos 1950, quando se envolveu em atividades clandestinas contra a ditadura de Fulgencio Batista. Depois, seria promovido pelo mesmo motivo, quando a revolução castrista vingou, em 1959. Dirigiu o Instituto de Cinema de Cuba, foi chefe do Conselho Nacional de Cultura, mas percebeu que o regime de Fidel não era muito diferente do anterior quando se tratava de censura. Em 1961, seu irmão dirigiu um documentário sobre a vida noturna de Havana, P.M., que foi proibido e sequestrado pelo governo. Revoltado, desempregado e exilado no próprio país, Cabrera Infante começou a compilar suas críticas de cinema (reunidas em Un Oficio del Siglo XX) e a escrever uma novela, Ela Cantava Boleros, mais tarde transformada em Três Tristes Tigres. Em 1965, com 36 anos, ao ler que o chefe da contrainteligência cubana havia declarado que ele só sairia do país por cima de seu cadáver, o escritor pegou suas filhas, três fotografias e partiu para Madri. Em tempo: o agente era um profeta. Morreu em um acidente. Cabrera passou por seu cadáver e viveu mais 40 anos. O show, afinal, tinha de continuar. E ele era a atração principal.

 

Em Três Tristes Tigres, ele começa com um mestre de cerimônias apresentando, no cabaré Tropicana, o espetáculo Going to Brazil, terra da "felichidade" e de Carmen Miranda. Logo em seguida, Cabrera introduz um personagem inesquecível, Gloria Pérez - não a autora de novelas, mas uma garota-propaganda que passa a usar calças compridas apertadas, cabelos oxigenados e um novo nome, Cuba Venegas. Depois, entra em cena a cantora de boleros Estrella Rodriguez, que o primeiro narrador, fotógrafo de cabarés, apresenta como uma Moby Dick negra com voz de barítono - na verdade, um contralto que faria Alejo Carpentier discutir música e esquecer sua obsessão racial, alfineta Cabrera.

 

Carpentier tinha uma grande obra quando vivia fora de Cuba, comentou certa vez Cabrera, "mas depois escreveu coisas como Concerto Barroco, feitas para serem aprovadas pelo comitê central do PC cubano". Ele é sua vítima preferencial em Três Tristes Tigres, quando o autor decide contar o assassinato de Trotski tal como o descreveriam alguns ícones da literatura cubana ("anos depois - ou antes" da morte): José Martí, Lezama Lima, Virgilio Piñera e Nicolás Guillén, entre outros. Nesse capítulo, Cabrera Infante escreve como um virtuose instrumentista tocaria ao imitar os mestres: com pouca reverência.

 

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O escritor mostra-se capaz de circular pela prosa maçônica e patriótica de Martí, pelo sistema poético-religioso de Lezama Lima, pela escritura reativa de Piñera e ainda despreza o tratamento da raça como valor ético defendido por Guillén, reservando a apoteose crítica para a literatura de Alejo Carpentier. É engraçadíssima a forma como Cabrera abusa da prosa barroca de Carpentier e de suas infindáveis descrições de ambientes, a ponto de esquecer o que estava narrando. Carpentier padecia sem saber da "síndrome de Honoré", comenta o autor de Três Tristes Tigres no livro após descrever, emulando o estilo do outro ao descrever como Jacques Mornard (nome falso do assassino Ramón Mercader, que morreu em Havana) matou Trotski com um golpe na cabeça.

 

Esse exercício de estilo, cheio de graça e neologismos, pretendia não só mostrar que a política é a pior inimiga da literatura, como prestar homenagem a dois autores que Cabrera de fato amava: Mark Twain, renovador da língua inglesa, e Lewis Carroll, cujo apego ao nonsense inspirou o fragmentário Três Tristes Tigres, não um Bildungsroman, um romance de formação do jovem escritor em Havana, mas um romance de deformação de um exilado.

 

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