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Nos 200 anos de Kierkegaard, colóquio e nova tradução atestam sua atualidade

Professora Pia Søltoft fala ao Estado sobre o filósofo

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Por Redação
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Do conceito da ironia ao paralelo entre seu pensamento e o do contemporâneo Adorno, a filosofia do dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) foi lembrada em seu bicentenário de nascimento no colóquio internacional realizado esta semana na USP com a presença de especialistas em sua obra, destacando-se a participação da professora Pia Søltoft, mestre em teologia da Universidade de Copenhague. A filósofa concedeu ao Estado uma entrevista exclusiva ao lado do professor Álvaro Valls, que lançou durante o evento sua tradução de Pós Escrito (1846) – obra de Kierkegaard dedicada à discussão da verdade do cristianismo e da relação subjetiva com essa verdade para tornar-se cristão.

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Kierkegaard, considerado o “pai do existencialismo”, talvez seja o filósofo do século 19 com maior ressonância entre os contemporâneos – e isso não só pelo número de sociedades criadas no mundo (inclusive no Brasil) para discutir sua filosofia, mas também pela citações diretas ou indiretas na literatura (de Albert Camus a Flannery O’Connor), no cinema (Carl Dreyer, Ingmar Bergman, Lars von Trier), no teatro (Samuel Beckett) e na própria filosofia (Adorno, Derrida, Habermas).

A professora Pia Søltoft abordou no colóquio dois temas caros a Kierkegaard: a inteligência das emoções e a paixão. Ele, afinal, foi um filósofo que fez tudo para escapar ao estereótipo do pensador no sentido hegeliano do termo. Se Hegel desenvolveu o idealismo absoluto com base na racionalidade, Kierkegaard elegeu a paixão como marco zero, perseguindo uma simetria entre razão e emoção. O dinamarquês critica a filosofia hegeliana por meio de um dos seus muitos pseudônimos, Johannes Climacus, para quem a filosofia, longe de começar com o assombro, como queria Descartes – ele diz que o “penso, logo existo” é uma tautologia –, tem na dúvida sua chave-mestra.

“Kierkegaard é, de fato, um escritor da paixão, o que explica, em parte, sua ressonância entre os contemporâneos, embora seja necessário enfatizar que o seu é um existencialismo cristão”, observa a professora dinamarquesa, chamando a atenção justamente para os muitos equívocos cometidos pela modernidade em nome de Kierkegaard, associando-o a Nietzsche e Sartre. Ao contrário dos modernos, ele queria ancorar sua verdade filosófica num porto mais seguro que o da consciência. O ceticismo de Kierkegaard não é o mesmo dos contemporâneos. “Habermas e Derrida, sem dúvida, devem muito à filosofia de Kierkegaard, assim como Camus, mas não se pode esquecer que, ao contrário dos modernos, ele fala do absurdo de situações de personagens bíblicos como Jó e Abraão para mostrar que há algo superior à a razão, incompreensível a quem não está inclinado à fé.”

Kierkegaard, como lembra o professor Álvaro Valls, “antecipa a crítica de Nietzsche à Igreja”, mas, ao contrário do filósofo alemão, aceita o intangível. Valls diz que, ao contar a história bíblica de Abraão, Kierkegaard quer, de fato, desafiar, mostrando que a fé é uma paixão. Referindo-se à conturbada relação do filósofo dinamarquês com seu pai, um severo protestante, Valls associa a crítica de Kierkegaard à ética racionalista, especialmente a hegeliana, como um meio de afirmar sua crença na angústia amalgamada à fé como meio de salvação. “Ele faz da filosofia não autoajuda, mas um meio de pensar a partir da vida, rejeitando a cátedra e tornando-se um filósofo de teatro, vale dizer, antiacadêmico.”

As contradições de Kierkegaard, traduzidas no uso de pseudônimos – que são como personagens desse teatro –, desembocam numa peça que Adorno considerava barroca. Ela termina numa provocação inscrita na lápide do filósofo, observa o tradutor Valls. Nela, em tom irônico ou não, evoca-se uma frase de Hans Adolph Brorson em que o filósofo diz repousar entre flores, conversando sem cessar com Jesus. Os versos simples do bispo dinamarquês Brorson são, segundo Valls, “uma provocação aos filósofos deslumbrados”.

A filósofa dinamarquesa Pia Søltoft conclui que os elementos biográficos e as reflexões filosóficas de Kierkegaard têm uma ligação tão estreita que é impossível desvinculá-los. Até nisso o filósofo dinamarquês antecipou a modernidade.

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