Norman Mailer "imoral" é lançado no Brasil

Ex-boxeador, biógrafo polêmico, marido de incontáveis mulheres, amigo da geração beat, Mailer tem publicado no Brasil, em novembro, O Parque do Cervos (Record)

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Por Agencia Estado
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Do outro lado da linha, ele pergunta: "Você está falando do Brasil?" Sim. "Então, temos alguns problemas: primeiro, sou quase surdo; além disso, há um certo espaço de tempo até que o som chegue aqui; vamos tentar?" Quem ouve mal, mas fala bem, é o escritor norte-americano Norman Mailer, de 78 anos, autor de livros como O Evangelho Segundo o Filho e Os Machões não Dançam (que ainda neste ano, deve ganhar uma nova tradução em português, intitulada Homem Que É Homem não Dança). Mailer, anualmente, aparece nas listas de possíveis ganhadores do Prêmio Nobel, e neste ano não foi diferente. Novamente, o autor de Os Nus e os Mortos, obra do início da carreira, sobre a 2.ª Guerra Mundial até hoje considerada seu grande trabalho de escritor, não ganhou. "Uma vez quase noiva, nunca noiva", brincou Mailer. Ex-boxeador, biógrafo polêmico de Marilyn Monroe, marido de incontáveis mulheres (esfaqueou a primeira delas), amigo da geração beat, Mailer tem publicado no Brasil, em novembro, O Parque do Cervos (Record, 392 páginas, R$ 40). O romance narra uma história passada durante o duro período em que o Comitê de Atividades Subversivas do Congresso promovia uma verdadeira caça às bruxas nos Estados Unidos. O narrador do livro, nominado Sergius O´Shaugnessy, é um ex-aviador, que vive na decadente Desert d´Or, nos anos 50, e conta a história de um cineasta talentoso acusado de filiação ao Partido Comunista, chamado Charles Eitel. Depois, inclusive, de lutar na Guerra Civil espanhola, Eitel é chamado a depôr, mas não entrega nenhum de seus amigos. Sua carreira, contudo, vai para o buraco, e ele se vê tentado a prestar um novo depoimento para limpar seu nome junto às autoridades. No final do livro, a edição brasileira traz um relato da história da obra publicada em 1955, escrito pelo próprio Norman Mailer. A primeira versão de O Parque dos Cervos, segundo ele, foi rejeitada por um editor entre outros possíveis motivos, devido ao temor de que fosse considerado amoral. Depois de buscar novas editoras, Mailer decidiu reescrever o livro, redefinindo, inclusive, o narrador. Entre as mudanças que promoveu, conta que inclui, após a frase "E me deu um beijo de irmã", outra oração: "Irmã mais velha." Ele comenta: "Só três palavras, mas era como se tivesse revelado alguma lei divina da natureza, como se tivesse colocado uma pista valiosíssima - o beijo de uma irmã mais velha estava a um universo de distância do beijo de uma irmã mais nova - e eu pensei em dar a mim mesmo o Prêmio Nobel por ter trazido tamanha luz e limite ao clichê do beijo de irmã." Estadao.com.br - Depois de quase 50 anos da primeira versão de Parque dos Cervos, como o senhor vê esse livro atualmente? Norman Mailer - Esse foi um livro em que estive envolvido por muito tempo. Mandei-o para o mesmo editor de Os Nus e os Mortos e ele disse que eu tinha de cortar um parágrafo. Eu disse não e ele decidiu não publicá-lo. Depois disso, enviei o livro para seis diferentes editoras, até que fosse publicado, o que me deixava muito nervoso. Parecia que eu estava em guerra, numa pequena guerra particular, minha guerra. Nesse processo, o reli, e percebi que não era tão bom quanto imaginava. Exigia mais trabalho, não naquele pequeno parágrafo, mas em todo o corpo. Reescrevi-o duas vezes, até entregá-lo ao novo editor. Fiquei muito próximo do livro, a perceber o que estava errado e certo com o que escrevia. Na verdade, eu comecei inclusive a aprender inglês com o livro, porque custava muito caro cada mudança que queria fazer, para enviá-las, etc. Foi muito bom, aprendi muito sobre escrever e reescrever com O Parque dos Cervos. Quando foi publicado, saíram muitas resenhas, boas e ruins, sobre ele. Estive mais envolvido com ele que com todos os outros livros que escrevi. Demorou muito até que eu me sentisse livre dessa obra. Por que o senhor deu esse título? Há uma certa ironia nele, não? Usei a citação de Mouffle d´Angerville, autor do livro A Vida Privada de Luís XV, uma epígrafe irônica. Os tempos do Parque dos Cervos na França, às vésperas da revolução de 1789, eram decadentes e havia muita decadência em Hollywood. Foi uma associação, uma brincadeira. O senhor é sempre lembrado para o Nobel. Acredita que um dia o receberá? Não acho. Não fui escolhido até hoje, por que razão o seria agora. Nos Estados Unidos, temos uma expressão muito boa para definir a situação: uma vez quase noiva, nunca noiva. O senhor escreveu que fez Sergius O´Shaugnessy, o narrador de O Parque dos Cervos, mais corajoso e mais forte que Norman Mailer. Ainda acha isso? Sim. Deixe-me dizer de outra forma. Um grande amigo meu costumava afirmar que um romancista pode escrever sobre qualquer um - um general, um político, uma estrela de cinema. Só uma pessoa o romancista não pode recriar: ele próprio. Eu acho que se pode escrever sobre alguém que é mais forte que você, mas é um processo delicado, porque você sempre se acha mais forte do que realmente é. Acho que essa é a razão pela qual a maioria dos romancistas escreve sobre pessoas que são "menores" que o autor. Menores espiritualmente, menores em caráter, menos inteligentes. Aí, é mais fácil, você pode sentir compaixão. Escrever sobre alguém que é "maior" que você, de um modo ou de outro, alguém com mais sucesso, mais saúde, mais bondoso, mais maldoso, qualquer coisa melhor que você, é muito difícil. Eu me lembro, quando escrevi um livro sobre Jesus Cristo, não foi nada fácil! Lulu, Elena, Dorothea. O senhor diria que as mulheres de O Parque dos Cervos são mais fracas que os homens? Não acho. Lulu, por exemplo, usa sua fraqueza para se tornar forte, ou seja, não fraca no final. Talvez não seja a personagem mais simpática que pode haver, mas é, no livro certamente, forte. É ambiciosa e também hábil, e pessoas que são muito ambiciosas talvez não sejam atraentes, mas não podem ser chamadas de fracas. E Elena é uma mulher sem vantagens: teve uma vida dura, não teve educação, tem de viver com gente mais preparada intelectualmente. Também pode não ser atraente como pessoa, mas é um personagem forte. O senhor afirmou, certa vez, ter uma espécie de casamento com os Estados Unidos. Algumas vezes o ama, algumas o odeia. Atualmente, depois dos ataques a Nova York e Washington, como está essa relação? Agora, os Estados Unidos têm religião. Todos ficaram muito patrióticos, rapidamente. E patriotismo é uma espécie de religião. Algumas religiões são maravilhosas, outras são manipuladoras. Então, a grande questão é: que tipo de religião vamos ter mais para a frente. O país vai se tornar mais profundo, mais preparado para os desafios que está enfrentando? Ou se transformará em algo monstruoso? Ainda não sei responder, é muito cedo para isso. Mas estou de dedos cruzados. Em 1969, o senhor se candidatou à prefeitura de Nova York. Voltaria a concorrer ao cargo? Não, sou muito velho. Como alguém como eu, surdo desse jeito, poderia ser prefeito de Nova York? Já imaginou quão alto as pessoas teriam de gritar? Olha, eu era mais jovem quando perdi, tinha apenas 46 anos. E nunca tentei novamente. Percebi que não era um bom político. Não, eu não tentaria novamente. Atualmente, é um emprego bastante difícil. É, mas você sabe: as pessoas que querem ser prefeitas de Nova York vão desejar o cargo em qualquer circunstância, boa ou ruim.

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