Noite seca de setembro. Eles ouviram pisadas fortes nos degraus da escada e não se surpreenderam com o rosto tenso do pai, que ergueu e abriu a mão direita para saudar os três filhos. Ficou de pé, a cabeça dele roçava o teto do porão. “O Dia da Pátria foi um fiasco, o plano de vocês não deu em nada… Agora a gente só tem três semanas, 2 de outubro está aí.”
O filho mais velho afrouxou o nó da gravata: “Acho que a coisa tá feia mesmo”, ele disse, virando o rosto para o irmão do meio. “As redes sociais falharam. A gente não conseguiu…” “Não foi culpa minha”, lamentou o do meio, raspando com as unhas a face direita. “Não vim aqui para achar um culpado”, gritou o pai. Um fio de saliva escorreu do canto da boca. “Quero reverter isso, a gente tem que chegar lá. Três semanas…” O filho mais novo passou a mão na barba, pediu calma e sorriu, dessa vez sem cinismo. O pai ia dizer algo quando viu sombras passarem pela janelinha que rasgava a parede lateral. “São as emas do nosso jardim”, riu o mais novo. “Esses quadrúpedes deram o que falar, mas esse tempo passou.” “Não são quadrúpedes, pai. São bípedes, que nem eu e você.” As sombras sumiram. No rasgo da parede reapareceu uma luminosidade funérea. “Você dá uma de sabichão só porque finge que fala inglês? Quero ver o bípede me tirar desse buraco. Vocês garantiram que iam fazer isso. No dia 6 de setembro a gente brindou, gargalhou. E agora…?” “A saída são os generais”, disse o mais novo. “Nossos generais são minoria nas Forças”, disse o pai, fechando as mãos manchadas de nódoas. “A maioria da ativa é legalista. Isso ficou claro na última reunião. Um general veio com um papo de respeitar a Constituição, o voto popular, a democracia... Quase todos concordaram com essa lenga-lenga. Sabem que a gente pode ser processado e preso, mas não estão nem aí.” O irmão do meio abriu a boca, o maxilar cresceu, monstruoso. “Agora é a hora do sacrifício”, ele disse em voz baixa. Os dois irmãos olharam para ele. “Hora do sacrifício?”, perguntou o pai. “Alguém tem que sofrer”, continuou o irmão do meio. “Alguém tem que ser ferido de verdade. É a única saída.” “Alguém… Quem?” “Você já fez sua parte, pai”, ele disse, virando a mandíbula para os irmãos. O rosto do pai ficou lívido, os lábios finos e contraídos pareciam uma cicatriz cinzenta que rachava o rosto. “Um dos meus três filhos?” “Um dos quatro”, disseram os três, em uníssono. “Isso é um pesadelo?” “É a nossa salvação, pai.” Ouviram passos na escada…
*Milton Hatoum é escritor e arquiteto, autor de Dois Irmãos e Cinzas do Norte