No palco, o humor cáustico de Shaw

Grupo Tapa, dirigido por Eduardo Tolentino, planeja investir seu talento para retratar o modus vivendi da classe dominante, com a estréia de Major Bárbara, de Bernard Shaw

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Há muito o premiado Grupo Tapa, dirigido por Eduardo Tolentino, planeja investir seu talento para retratar em cena o modus vivendi da classe dominante. A realização desse projeto tem início nesta quinta, com a estréia de Major Bárbara, de Bernard Shaw, no Teatro Aliança Francesa. Tal escolha não significa uma guinada ideológica na trajetória da companhia, mas apenas uma inversão de ponto de vista. Nessa peça, a engrenagem do sistema capitalista é desvendada sob a visão da elite. "Bernard Shaw era um intelectual politizado, capaz de um humor cáustico e feroz", diz Tolentino. Em Major Bárbara a opressão é examinada pelo ângulo do protagonista, o empresário milionário interpretado por Zecarlos Machado. É como se o público tivesse acesso aos pensamentos só explicitados entre as quatro ou 400 paredes das suntuosas mansões do planeta. "Você pode praticar a imoralidade, desde que pregue a moralidade", diz na peça a ex-mulher do milionário, ao ensinar o filho como deve comportar-se um legítimo representante da elite. "No Brasil, no que diz respeito ao discurso, nada diferencia o político conservador ou o empresário corrupto de um íntegro representante da esquerda. Todos dizem a mesma coisa sobre a necessidade da ética, da honestidade, do fim da pobreza, etc.", comenta Tolentino. Se é a prática que os diferencia, o milionário criado por Bernard Shaw não teme explicitar essa prática. Ele fala abertamente, sem falsos pudores, sobre como ganhar dinheiro e manter o poder, com a plena consciência de que isso significa fazer funcionar uma engrenagem de morte e devastação. Narra com tal clareza como conduz sua fábrica de armas e azeita a engrenagem que alimenta a sua riqueza, que deixa boquiaberto o namorado (Brian Penido) de sua filha Bárbara (Clara Carvalho). E o espanto não vem da falta de escrúpulos. "Inusitado é alguém assumir isso." A trama de Major Bárbara é aparentemente simples. Separada de seu marido, com duas filhas em idade de casar e um filho indeciso sobre a carreira que deve seguir, uma dama inglesa (Lilian Blanc) resolve convocar o ex-marido à sua casa para exigir que assegure o futuro da família. Ele não via os filhos há tanto tempo que nem mesmo é capaz de reconhecê-los à primeira vista. Uma de suas filhas é uma garota fútil, noiva de um rapaz igualmente superficial. Bárbara é uma major do Exército da Salvação. Idealista e ao mesmo tempo encantada pelo sedutor pai, Bárbara aceita o desafio de visitar sua fábrica de armas, desde que ele antes vá até o seu exército. Começa aí um embate entre pai e filha no campo das idéias. Bárbara acredita poder salvar o pai que, por sua vez, confia no poder de sedução do dinheiro para conquistar a filha. "O que Shaw faz é desvendar, diante de nossos olhos, peça por peça, a engrenagem do sistema capitalista", diz o diretor. Até os pobres do Exército da Salvação têm funções bem definidas nessa máquina. Um deles é um velho que perdeu o emprego por causa da idade. Aceitar um prato de comida oferecido pelas religiosas agride seu orgulho de trabalhador honesto e digno. "No prefácio da peça, Shaw diz que esse é o mais execrável de todos, o pobre que não se rebela: ele é o bagaço que o sistema joga fora." Ninguém é inocente na peça. E até mesmo a superior de Bárbara no Exército, ao pedir uma doação ao milionário, argumenta que a religião serve para "apaziguar" a fome e a revolta. No embate entre Bárbara e seu pai, obviamente, o milionário sai vitorioso. "Do contrário, Shaw não seria um grande autor realista", ironiza Tolentino. Afinal, quem vence é o dinheiro. Curiosamente, num dado momento, o milionário mostra saber qual seria a única forma de modificar essa engrenagem - a pólvora. "Estávamos ensaindo quando as duas torres caíram em Nova York. Tivemos de rever coisas. A atualidade da texto saltou aos olhos. Na peça, os personagens estão sobre um barril de pólvora que pode explodir a qualquer instante. Ele explodiu." Segundo Tolentino, o brilho de Major Bárbara não se limita ao campo das idéias. "Shaw mistura diferentes estilos de teatro. O primeiro ato lembra as peças de salão, enquanto as cenas no Exército da Salvação já têm traços de teatro épico. O último ato, na fábrica, o mais abstrato, remete ao teatro do absurdo, os personagens estão num vazio, em lugar nenhum. Nessa peça, Shaw abre algumas portas formais que o século 20 vai desenvolver." Em sua concepção, Tolentino procurou enfatizar essas diferenças estilísticas e ainda marcar as diferenças sociais em planos distintos: mais baixo para os pobres, alto para os ricos e, acima de todos, o plano final na estranha fábrica de armas. A montagem chega ao palco amparada pelo Prêmio Estímulo Flávio Rangel, no valor de R$ 100 mil, patrocinado pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. E o grupo passa agora a ser patrocinado pela BR-Distribuidora. Serviço - Major Bárbara. De Bernard Shaw. Duração: 150 minutos. Quinta a sábado, às 21 horas; domingo, às 19 horas. R$ 10,00 (preço promocional). Teatro Aliança Francesa. Rua General Jardim, 182, tel. 259-0086. Até 16/12

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.