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No mundo de Borges

Depois de ter dado a volta do mundo, a obra de Jorge Luis Borges está finalmente chegando ao Brasil. Após Nova Antologia Pessoal, lançada pela Editôra do Autor, acaba de sair Ficções aos cuidados da Editôra Globo. Esperadas com impaciência, permitem ao leitor brasileiro um primeiro contato com uma das obras mais estranhas e mais pessoais da nossa época.

Por Paulo Rónai
Atualização:

 

Educado na Europa, dono de vasta cultura humanística, Borges não esconde que a sua vida foi consagrada antes a ler do que a viver. A paixão da leitura é o solo em que mergulham as raízes da sua ficção, extremamente livresca, mas sacudida por uma vibração constante. A sua imaginação diverte-se em inventar livros esquisitos, e os autores dêsses livros, e as aventuras dêsses autores a influírem indiretamente na vida de outras personagens.

 

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Aderindo à linhagem de ilustres mistificadores, como Macpherson ou Mérimée, faz-se o biógrafo e o bibliógrafo dêsses fantasmas que integra, por meio de remissões eruditas e referências cruzadas, no universo literário. Mas, depois de apoiar as suas invenções em fatos reais e documentados, desencadeia uma ação tôda íntima, impassível de verificação e empolgante ao mesmo tempo.

 

Avêsso à composição de romances maciços em redor de uma idéia para cuja exposição oral bastam poucos minutos, o nosso autor prefere simular que êsses romances já existem e apresentar um resumo, um comentário dos mesmos. Daí, talvez, a densidade excepcional de seus contos, que têm algo do pequeno cone reluzente, a que se refere numa hospedaria. "Peguei-o na palma da mão por alguns minutos; lembro-me de que seu pêso era intolerável, e que, depois de retirado o cone, persistiu a pressão".

 

Mestre do gênero, cultiva-lhe tôdas as variantes - o apólogo, a parábola, a fantasia, a lenda, o conto de mistério, o fantástico, o policial, o simbólico, o filológico - tôdas, menos a humorística. A ação encobre sempre outra, que aponta no fim da história e se entrelaça com a primeira do modo mais inesperado; e as duas, juntas, encobrem um sentido oculto.

 

No Prólogo da Nova Antologia Pessoal, Borges assinala os seus temas preferidos: "a perplexidade metafísica, os mortos que perduraram em mim, a germanística, a linguagem, a pátria, o paradoxal destino dos poetas". Poder-lhes-iamos acrescentar a cabala, a mística, a metempsicose, e indicar alguns de seus motivos principais: as formas geométricas, assim com os espelhos e os labirintos, realidades ambíguas que são a sua obsessão e influem sôbre a estrutura de suas narrativas. O assassino substitui-se à vítima; o herói encarna-se no traidor e vice versa; a literatura, espelho da vida, impõe a esta os seus moldes; o mundo imaginário acaba sendo mais forte que o real. Uma conspiração de eruditos inventa outro universo, escreve-lhe a história e a geografia fictícias, constrói-lhe a língua, compõe-lhe a enciclopédia. Um homem em centenas de noites a fio sonha que está criando outro; quando afinal um deus, entrevisto no sonho, autoriza a encarnação do semelhante sonhado, o sonhador percebe êle próprio não passar do sonho de um terceiro. O acidentado que perdeu a capacidade de esquecer morre esmagado sob o peso de suas lembranças. Um condenado à morte alcança, no momento da execução, a graça de uma suspensão individual do tempo.

 

Em muitos contos nota-se a interseção de vários planos. A história de um crime recebe luz nova de dois mil anos de pesquisas teológicas. A biblioteca de Babel materializa a idéia do infinito. A loteria da Babilônia, com suas constantes inovações; acaba por engolir o Estado e por se substituir ao Destino.

 

Cinco narrativas, comuns aos dois volumes, dão um ensejo a uma comparação das traduções da dupla Maria Julieta Graña - Marly de Oliveira Moreira com as de Carlos Nejar. As divergências são poucas, havendo parágrafos inteiros quase totalmente idênticos, o que por si só constitui garantia de fidelidade. O número pequeno de discordância pode ser explicado também pelo receio salutar dos tradutores de caírem numa das muitas armadilhas escondidas sob o texto despojado, de aparente simplicidade. Às vêzes preferiríamos que êles se arriscassem a uma versão algo menos literal e mais interpretativa. Em todo caso o seu labor sério merece os maiores elogios.

 

A Antologia abrange também poemas de clássica pureza e grande profundidade de pensamento, sonêtos de forte efeito plástico, versos banhados da melancolia da transitoriedade. Sob o nome de "prosas" são arrolados instantâneos e flagrantes, poemas em prosa, minutos de inspiração fugaz. Os "ensaios" em que Borges paga suas dívidas a seus mestres pesquisam a filiação misteriosa de motivos literários. De modo curioso, está incluído entre êles "A Escrita do Deus", uma das ficções mais alucinatórias do autor.

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