Educado na Europa, dono de vasta cultura humanística, Borges não esconde que a sua vida foi consagrada antes a ler do que a viver. A paixão da leitura é o solo em que mergulham as raízes da sua ficção, extremamente livresca, mas sacudida por uma vibração constante. A sua imaginação diverte-se em inventar livros esquisitos, e os autores dêsses livros, e as aventuras dêsses autores a influírem indiretamente na vida de outras personagens.
Aderindo à linhagem de ilustres mistificadores, como Macpherson ou Mérimée, faz-se o biógrafo e o bibliógrafo dêsses fantasmas que integra, por meio de remissões eruditas e referências cruzadas, no universo literário. Mas, depois de apoiar as suas invenções em fatos reais e documentados, desencadeia uma ação tôda íntima, impassível de verificação e empolgante ao mesmo tempo.
Avêsso à composição de romances maciços em redor de uma idéia para cuja exposição oral bastam poucos minutos, o nosso autor prefere simular que êsses romances já existem e apresentar um resumo, um comentário dos mesmos. Daí, talvez, a densidade excepcional de seus contos, que têm algo do pequeno cone reluzente, a que se refere numa hospedaria. "Peguei-o na palma da mão por alguns minutos; lembro-me de que seu pêso era intolerável, e que, depois de retirado o cone, persistiu a pressão".
Mestre do gênero, cultiva-lhe tôdas as variantes - o apólogo, a parábola, a fantasia, a lenda, o conto de mistério, o fantástico, o policial, o simbólico, o filológico - tôdas, menos a humorística. A ação encobre sempre outra, que aponta no fim da história e se entrelaça com a primeira do modo mais inesperado; e as duas, juntas, encobrem um sentido oculto.
No Prólogo da Nova Antologia Pessoal, Borges assinala os seus temas preferidos: "a perplexidade metafísica, os mortos que perduraram em mim, a germanística, a linguagem, a pátria, o paradoxal destino dos poetas". Poder-lhes-iamos acrescentar a cabala, a mística, a metempsicose, e indicar alguns de seus motivos principais: as formas geométricas, assim com os espelhos e os labirintos, realidades ambíguas que são a sua obsessão e influem sôbre a estrutura de suas narrativas. O assassino substitui-se à vítima; o herói encarna-se no traidor e vice versa; a literatura, espelho da vida, impõe a esta os seus moldes; o mundo imaginário acaba sendo mais forte que o real. Uma conspiração de eruditos inventa outro universo, escreve-lhe a história e a geografia fictícias, constrói-lhe a língua, compõe-lhe a enciclopédia. Um homem em centenas de noites a fio sonha que está criando outro; quando afinal um deus, entrevisto no sonho, autoriza a encarnação do semelhante sonhado, o sonhador percebe êle próprio não passar do sonho de um terceiro. O acidentado que perdeu a capacidade de esquecer morre esmagado sob o peso de suas lembranças. Um condenado à morte alcança, no momento da execução, a graça de uma suspensão individual do tempo.
Em muitos contos nota-se a interseção de vários planos. A história de um crime recebe luz nova de dois mil anos de pesquisas teológicas. A biblioteca de Babel materializa a idéia do infinito. A loteria da Babilônia, com suas constantes inovações; acaba por engolir o Estado e por se substituir ao Destino.
Cinco narrativas, comuns aos dois volumes, dão um ensejo a uma comparação das traduções da dupla Maria Julieta Graña - Marly de Oliveira Moreira com as de Carlos Nejar. As divergências são poucas, havendo parágrafos inteiros quase totalmente idênticos, o que por si só constitui garantia de fidelidade. O número pequeno de discordância pode ser explicado também pelo receio salutar dos tradutores de caírem numa das muitas armadilhas escondidas sob o texto despojado, de aparente simplicidade. Às vêzes preferiríamos que êles se arriscassem a uma versão algo menos literal e mais interpretativa. Em todo caso o seu labor sério merece os maiores elogios.
A Antologia abrange também poemas de clássica pureza e grande profundidade de pensamento, sonêtos de forte efeito plástico, versos banhados da melancolia da transitoriedade. Sob o nome de "prosas" são arrolados instantâneos e flagrantes, poemas em prosa, minutos de inspiração fugaz. Os "ensaios" em que Borges paga suas dívidas a seus mestres pesquisam a filiação misteriosa de motivos literários. De modo curioso, está incluído entre êles "A Escrita do Deus", uma das ficções mais alucinatórias do autor.