No Masp, o registro em fotos da Depressão americana

O norte-americano Walker Evans (1903-1975) ganha, a partir de hoje, sua primeira retrospectiva no Brasil

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Primeiro fotógrafo a ser contemplado com uma exposição individual no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 1933 , o norte-americano Walker Evans (1903-1975) ganha, a partir de hoje, sua primeira retrospectiva no Brasil. A mostra reúne 121 imagens do profissional, que passou à história da fotografia por ter documentado a Depressão americana nos anos 1930. Aberta nesta quarta, 30, para convidados, e na sexta, para o público, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), é a segunda exposição que a Fundación Mapfre promove no Brasil dentro do convênio firmado com o Masp, que, em troca, emprestou ao grupo segurador espanhol esculturas de Degas (em 2008) e agora manda para Madri 35 obras da mostra Olhar e Ser Visto, organizada pelo curador do museu, Teixeira Coelho.

 

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É curiosa a origem da mostra Walker Evans, que esteve na Fundación Mapfre de Madri entre janeiro e março deste ano. Um colecionador norte-americano emprestou parte de seu acervo - a maioria das fotos da mostra pertence a ele - para que a exposição circulasse pelo mundo. Sem revelar o nome do colecionador, que prefere o anonimato, o diretor-geral do Instituto de Cultura mantido pela fundação espanhola, Pablo JiménezBurillo, diz que a intenção do americano é "oferecer uma esperança ao mundo, que ainda enfrenta os efeitos da recente crise econômica, situação que remete aos anos da Grande Depressão". Assim, o núcleo da retrospectiva é mesmo a série de fotografias que Evans registrou no Sul dos EUA entre 1935 e 1936, contratado pelo governo americano.

 

Roosevelt estava interessado em criar um arquivo de imagens da Depressão para uma agência estatal. Teoricamente, o arquivo serviria ao programa social do ex-presidente americano para a erradicação da pobreza e a construção de uma identidade nacional - o chamado New Deal, destinado a atender os segmentos menos favorecidos da sociedade americana, como os plantadores de algodão do Alabama.

Considerando a radical transformação da agência estatal (um serviço de assistência aos agricultores convertido no Office for War Information), fica a dúvida se essas fotos documentais não serviriam a outro propósito - o controle ideológico do Estado, por exemplo.

 

Em todo o caso, o eixo em torno do qual se movem outras séries da retrospectiva - cenas de Havana nos anos 1930 ou de anônimos no metrô nova-iorquino nos anos 1940 - define o estilo Walker Evans de documentação poética da realidade. Foi justamente o ensaio sobre a Depressão americana que aproximou Evans do poeta, romancista e roteirista de cinema James Agee (1909-1955), autor de Let Us Now Praise Famous Men, livro que relata as condições de vida dos miseráveis do Alabama durante a Depressão. Não se trata apenas de um ensaio documental rotineiro. Apesar do estilo de Evans, frio e avesso ao sentimentalismo, são fotos que traduzem uma visão moral do mundo em que viveu. Filho da alta burguesia - o pai de Evans era publicitário -, o fotógrafo renegou o esteticismo de seus contemporâneos, em especial o de Alfred Stieglitz, promotor da vanguarda norte-americano nos anos 1920, ao decidir embarcar nessa viagem com Agee pelo Alabama, vendo mais do que seus olhos podiam suportar.

 

Evans e Agee passaram dois meses registrando para a revista Fortune o cotidiano de três famílias de granjeiros no último estágio de pobreza (um deles retratado nesta página) . Combinando a reportagem factual com exercício literário, o ensaio não convenceu os editores da revista. "Mais tarde, a Fortune contrataria Evans, que mudou a estética da revista nos anos 1940", observa Teixeira Coelho, destacando o papel do fotógrafo como protagonista da nova fotografia americana que surge no pós-guerra. Evans passou 20 anos (de 1945 a 1965) fotografando para a revista. Antes disso, realizou uma de suas séries mais conhecidas, a dos passageiros do metrô de Nova York flagrados com uma câmera oculta. Há na mostra alguns exemplares realizados entre 1938 e 1941. A exposição cobre, de forma cronológica, todas as fases de Evans, das primeiras fotos em Paris nos anos 1920 - autorretratos que denunciam o isolamento do estudante de literatura na Sorbonne - até as Polaroids dos anos 1970. "Em todas elas, sua sensibilidade é marcada pelo urbano", observa Jiménez Burillo, lembrando que seu desejo de entender e ordenar o mundo que o rodeia deve algo à figura do flâneur criado por Baudelaire (de quem Evans foi tradutor), que vaga pela urbe em busca dos signos que a traduzam. Suas Polaroids do último período, fixadas nos sinais de trânsito, constroem, de fato, uma narrativa quase literária. Compreensível. Escrever foi sua primeira opção.

 

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Ele não se tornou escritor, mas viveu cercado deles. Em 1933, Evans desembarcou em Cuba para realizar uma série de fotografias que ilustram o livro The Crime of Cuba, do jornalista e historiador Carleton Beals (1893-1979), um registro do terror e da miséria da ditadura de Gerardo Machado. Choca o modo como Evans separa o sujeito e o objeto ao fotografar mártires do regime e indigentes na rua, encarando a fotografia como reescritura da realidade. Ele inaugura uma forma de olhar, como um desgarrado flâneur vagando pela cidade - vista como experiência intersubjetiva. Ao repudiar o esteticismo de Stieglitz e adotar um distanciamento brechtiano dos personagens, ele afirma a fotografia como documento.

 

Nem sempre foi assim. A mostra traz também seus primeiros trabalhos, dos anos 1920, fotos dos arranha-céus de Nova York que remetem aos ensaios construtivistas do vanguardista russo Rodchenko (1891-1956). Ecos da Nova Objetividade, da visão bauhausiana da cidade como edificação, surgem em fotos das janelas de Wall Street (uma delas nesta página). Sem elas, um fotógrafo como Robert Frank , seu pupilo, teria demorado mais para descobrir a América.

 

Walker Evans. Masp. Avenida Paulista, 1.578, 3251-5644. 11 h/ 18 h (5.ª até 20 h; fecha 2.ª). R$ 15 (3.ª, grátis). Até 10/1. Abre hoje para convidados

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