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No Ipiranga, uma noite de subversão punk

Por Roberto Nascimento
Atualização:

O ápice das avassaladoras apresentações do Gang of Four acontecem durante o bis. Há um micro-ondas no lado esquerdo do palco. Surge o quase psicótico vocalista Jon King, empunhando um taco de madeira, sangue nos olhos, e a plateia logo se dá conta do que está para acontecer. Uma, duas, três pauladas no eletrodoméstico. A porta cai e a dilacerante guitarra de Andy Gill volta a tocar com o restante da banda. O taco então vira um instrumento de percussão e tortura manuseado por King, que desfigura o micro gradualmente, reduzindo-o a sucata, propagando a tensão, até atirá-lo aos pés da plateia VIP. Não mais que 3 mil pessoas, estimativa da reportagem, presenciaram o sacrifício do micro-ondas neste domingo, parte da programação de bandas britânicas do Cultura Inglesa Festival, no Parque da Independência. Heróis do pós-punk, padrinhos de uma vertente elegantíssima do rock, que prima pelo minimalismo, pelo groove, e influenciou de Red Hot Chili Peppers e Rage Against the Machine a LCD Soundsystem, Gill e King estavam impossíveis. O micro-ondas foi a última das vítimas. Antes dele, uma guitarra foi decapitada, um microfone atirado diversas vezes ao chão e seu stand ostentado por King como uma lança, ameaçando a plateia e seus companheiros. "Ele é um menino tão malvado", lamentou Gill, comicamente, depois de um dos vandalismos do vocalista. A presença de King dá a energia subversiva da banda. Cantando as do recente Content, ou voltando ao passado de Entertainment! e Solid Gold, sua energia é focada, perfurante, maníaca, assassina, uma relíquia da explosão punk do fim dos anos 70. Ao cantar, seus dedos tremem e pouco do que fala à plateia é compreensível, como se estivesse conversando sozinho, em uma cela de manicômio. Ao seu lado, Gill toca, castiga, esmerilha na Stratocaster. Há um universo de matéria escura entre seu instrumento e o resto da banda. As linhas de sua guitarra se chocam entre si enquanto Gill permanece estoico, deixando as dissonâncias doloridas rasgarem por baixo. Como no dub, forte influência da banda, o baixo e a bateria dão a estrutura esparsa e ritmada. E eis o diferencial da banda: toda a destruição é estruturada pelo groove, enxugando os excessos, dando lógica aos surtos. No início da tarde, o Blood Red Shoes fez um show que honrou sua escalação ao lado dos veteranos. Com Steven Ansell na bateria e Laura-Mary Carter na guitarra, o duo fez estremecer a estátua de dom Pedro I com uma mescla de grunge e garage que certamente assustou as famílias atraídas pela promessa de uma tarde de música grátis no parque. Sobrou para a moçada indie, que compareceu em massa, mas não o suficiente para lotar o evento. Entre o duo e a gangue, o britpop de Miles Kane, ex-líder do Rascals e protegido de Noel Gallagher, deixou a desejar com um set de pop rock mediano que pareceu irrelevante em meio ao peso e contundência das duas bandas. Mais uma vez, o público se decepcionou com a proibição da cerveja no parque. Os copos d"água, distribuídos gratuitamente, pareciam uma resposta cínica para quem procurava uma gelada, ou quente, para combater a friaca do fim de semana.

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