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No infringir dos ovos

Por HUMBERTO WERNECK
Atualização:

É, ando mesmo precisado de rever conceitos, chacoalhar convicções entranhadas.Estímulos não me faltam. Veja o caso do historiador que nos vem agora com esta história: nossa mais recente ditadura militar não o foi o tempo todo, quer dizer, não cobriu todos os 21 anos que vão de 1964 a 1985. Se bem entendi seu arrazoado, ditadura, no duro, só tivemos entre dezembro de 1968, quando posou nos ombros da nacionalidade o passaralho do AI-5, e novembro de 1982, quando os militares nos permitiram outra vez votar para governador. Nas contas do professor, portanto, os tais Anos de Chumbo foram apenas 14. Apenas. Os outros 7, ele não esclarece de que metal terão sido. Não chega a falar em ditabranda, mas é o que se infere do parecer que o mestre acaba de levar ao tribunal da história do Brasil, com o objetivo de reajustar, para baixo, a duração do tempo que passamos sob as botas. Aqueles sete anos terão sido, digamos, uma quadra mais amena - vivida sob as botas, é verdade, mas no providencial respiro situado entre a sola e o salto. Grosso modo, ouso comparar, o que fez o professor foi apresentar um embargo infringente semelhante àqueles com que uns tantos condenados do mensalão lograram abreviar suas penas. Vitoriosa a tese do revisor, serei obrigado, também eu, a revisar um episódio de minha desimportante biografia. Os 17 dias em que estive engaiolado numa cela da Divisão de Vigilância Social terão que ser doravante considerados como imersão num SPA especializado em desintoxicação ideológica, algo assim, de vez que àquela altura, outubro de 1966, não havia no País, sustenta o professor, uma situação que configurasse ditadura da boa. Passa a ser irrelevante o fato de que na cela em frente à minha mofasse José Gomes Pimenta, o Dazinho, líder dos trabalhadores da mina de Morro Velho que em abril de 1964 não só perdeu o mandato de deputado estadual como, já entrado em anos, entrou também na borduna, nos porões da ditabranda. Mero acidente de percurso: segundo o mestre, estaríamos ainda na primeira das duas fatias de tempo histórico que ensanduicharam um naco de indigesta ditadura, essa sim, digna do nome. Pouco importa, também, se por aqueles dias, no Recife, outro líder sindical, Gregório Bezerra, tenha sido obrigado a desfilar seminu, literalmente com a corda no pescoço. Tratou-se, no máximo, de um venial episódio de ressaca democrática de um povo que, exorcizado o fantasma do comunismo, aqui e ali se excedeu na merecida comemoração. De qualquer forma, ainda não baixara aquilo a que outro luminar se referiu, na semana passada, como "o vezo tutorial que empanou o regime de 1964". Peço licença para voltar a meu insignificante caso pessoal. Nas mãos dos agentes da ditabranda de 1964-68, não levei os cascudos que, ai de mim, sequer mereci, tamanha a minha pequenez política. Devolvido à liberdade, mas com a ficha suja, vi fecharem-se as portas do serviço público, mais exatamente as do Itamaraty, eu que sonhava com o glamouroso bem-bom (assim achava o moço de 21 anos) de uma carreira diplomática nos moldes da que teria garantido a João Cabral sossego para lucubrar seus versos. Que obra literária teria feito eu, em lugar desta prosinha roscofe, houvesse a minha vida deslizado entre Roma, Paris e Nova York! Mas Deus sabe o que faz, diria minha mãe, qualquer mãe: poderia ser hoje embaixador em Uganda, já imaginou? Ou encarregado de negócios no Togo - posto que um de meus primos um dia abandonou sem mais aquela, criando o que viria a ser um case ainda hoje lembrado no Itamaraty.Meu consolo é imaginar que talvez não tivesse tido melhor sorte, se estivesse no lado oposto quando sobreveio o golpe militar: quem nos garante que lá é mais seguro e confortável? Penso no general que foi em Minas um dos líderes do frege de 64. Escanteado, não tardou a divergir dos colegas que, alistados no pelotão do vezo tutorial, gulosamente abocanharam as mais apetitosas tetas da Mãe Pátria. Alguns anos mais tarde, na Europa, foi atropelado e morto num insuspeito acidente de trânsito. Pois é, também nas ruas de Londres, com aquela mão de direção invertida, o perigo pode vir da direita.

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