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No horror da guerra, uma aula de critério jornalístico

Em quatro volumes, compilação dos relatos semanais de Julio Mesquita sobre a 1.ª Guerra Mundial impressiona pelo rigor e precisão

Por Agencia Estado
Atualização:

Há quem diga que não existe nada mais inútil que um jornal da véspera. E isso é verdade, para quem precisa apenas acompanhar o noticiário do dia, nada mais importando. Mas alguns jornais - não muitos - têm, mais do que a pretensão, a noção histórica, de que são uma fonte secundária da História, que da leitura de suas coleções antigas o curioso, o interessado, o estudioso, poderá extrair o fio condutor dos grandes acontecimentos que moldaram a vida de uma cidade, de um país, do mundo. O Estado de S. Paulo tem sido um desses raros jornais feitos para informar o assinante e o leitor que o compra na banca, para consumo imediato, mas também para que as gerações futuras possam acompanhar, em suas páginas, a evolução da História dos homens, das idéias e das nações. Pude constatar pessoalmente a eficiência dessa linha editorial - no fundo resultante da importância que os homens que fazem esse jornal têm do papel do Estado na vida nacional e diante da História - quando, já se vão 20 anos, escrevi um relato, praticamente um diário, sobre a Revolução de 32, começando com o desfecho da Revolução de 30 e fechando com a derrota das armas paulistas - mas com o triunfo da idéia constitucionalista. Lá estavam, nas edições do Estado, dia após dia, os fatos e as interpretações que, lidas em seqüência, faziam mais que uma linha de tempo, pois eram um substancioso arcabouço que apenas precisava do concurso de alguns documentos originais e de depoimentos pessoais para completar um amplo retrato da época. Mas as reportagens e artigos de análise e interpretação que constituem riquíssimo material histórico e sociológico nem sempre têm o destino, por exemplo, dos relatos sobre a Guerra de Canudos que Euclides da Cunha fez para o Estado e que se transformaram, mais tarde, em Os Sertões, livro de leitura obrigatória para quem pretenda compreender o Brasil. As coleções de jornais velhos são guardadas em arquivos e bibliotecas, à espera de alguém que as consulte. Em outras palavras, ficam fora de circulação, acessíveis apenas a um grupo restrito de pessoas que, geralmente por dever de ofício, se dispõem a vasculhar o passado. A iniciativa de Ruy Mesquita Filho, de publicar em quatro volumes e em CD-ROM os comentários que seu bisavô, Julio Mesquita, publicou no Estado todas as segundas-feiras, durante os quatro anos de duração da1.ª Guerra Mundial, coloca à disposição do público um trabalho jornalístico de primeira qualidade, mas também uma aguda análise histórica, política, sociológica e estratégica até agora conhecido por poucos contemporâneos. O estilo escorreito e preciso de Julio Mesquita prende o leitor, que logo nas primeiras páginas se deixa encantar - ou surpreender, no caso daqueles que nunca tiveram contato com o autor - pela habilidade com que o cronista tempera os acontecimentos de uma das mais cruéis guerras que a humanidade conheceu com a sua imensa cultura geral - não para edulcorar o que começou sendo uma tragédia européia e acabou como um conflito que envolveu todos os continentes, mas para esclarecer e ilustrar. Riqueza - Não se assuste o leitor de hoje com tamanho da empreitada que terá à sua frente. São quatro volumes, com pouco mais de 900 páginas, mas, além da qualidade literária do texto e da riqueza de informações que ele contem, o leitor será auxiliado, logo de início, por uma magnífica apresentação feita por Gilles Lapouge. Brota da emoção de Lapouge - um autor premiado pela Academia Francesa e correspondente do Estado há meio século - um relato que que a mais terrível das guerras representa, até hoje, para os franceses. E o que a leitura das crônicas de Julio Mesquita significou para ele. "Folheei atentamente aquelas páginas. Elas primeiro me apaixonaram, depois me perturbaram: as palavras, renascidas do silêncio, mudaram todas as imagens que eu tinha da Grande Guerra. Todas as figuras do conflito se metamorfoseavam diante dos textos escritos por um jornalista brasileiro, tão longe da França. A ´minha´ guerra de 14-18, que eu acreditava inerte e petrificada para todo o sempre, revivia. Em vez de ficar ajuizadamente quieta em um canto da memória, ela se agitava, me acenava. Seu estilo, sua figura, seus segredos, sua parte desconhecida, seu incognoscível, tudo, de súbito, mudava de cor. Eu via desenhar-se, sob meus olhos, uma guerra que era ao mesmo tempo a mesma e, ainda assim, outra." Também não se aflija o leitor que não tem familiaridade com os acontecimentos políticos e militares da guerra. As crônicas de cada ano do conflito são precedidas por pequenos, mas muito precisos, ensaios escritos pelo professor Fortunato Pastore. As manobras diplomáticas, os eventos guerreiros são descritos em tal ordem que, mesmo para quem pouco conhece do período, fica fácil associar as crônicas semanais de Júlio Mesquita ao quadro geral do grande conflito. No volume final, José Alfredo Vidigal Pontes acrescenta um didático comentário sobre a questão da paz. Os textos são entremeados por mais de 500 fotografias, escolhidas por Ruy Mesquita Filho entre mais de 5 mil que ilustraram as revistas francesas Le Miroir e L´Ilustration e a inglesa London News, livros sobre o conflito ou pertencem ao arquivo do jornal O Estado de S. Paulo. Trata-se, assim, de um importante documento iconográfico, com o registro de um dos mais sangrentos conflitos da humanidade. O que primeiro chama a atenção nas crônicas de Julio Mesquita é o fato de terem sido escritas com base em material precário e nem sempre confiável. As comunicações, na época, dependiam do telégrafo; os despachos que chegavam das capitais européias nem sempre eram isentos, fazendo parte da propaganda de guerra. Ainda assim, o diretor do Estado conseguiu, durante quatro anos, produzir semanalmente uma coluna que condensava com bastante exatidão os acontecimentos, sobre os quais fazia análises consistentes. Ele era, afinal, um grande jornalista, preocupado em dar uma nova dimensão ao jornalismo que era praticado no Brasil, como informa ao leitor a um perfil biográfico feito pelo historiador Jorge Caldeira. Seus principais instrumentos de trabalho eram a razão, o critério jornalístico - que alguns preferem chamar de instinto - e o conhecimento da psicologia dos principais povos envolvidos no conflito. E fazia autocríticas, de tempos em tempos. A primeira delas quando a guerra completou três meses: "Lançamos os olhos para o passado, revemos o nosso modesto trabalho deste tumultuoso e ensanguentado trimestre e, depois de o ter revisto, diz-nos a consciência que não nos devemos arrepender do método que adotamos. Graças a ele, e do pouco que sabíamos do movimento político da Europa, não foram muitas nem grandes as surpresas que nos assaltaram pelo caminho. Não nos ocupamos uma só vez com as minuciosidades da estratégia, e com os múltiplos, complicadíssimos aspectos da tática e das manobras dos exércitos em campanha. Para esse esforço, em que os mais competentes fatalmente teriam de naufragar numa guerra como esta, tão diferente de todas as guerras de que nos fala a História, requeria-se uma capacidade técnica, que de todo nos faltava, e uma argúcia profissional tão apurada que nem mesmo os mais ilustres profissionais a têm revelado. Limitamo-nos a procurar as linhas gerais da tremenda conflagração e, deixando que elas nos guiassem, poderíamos ter errado aqui e ali, mas presumimos que no conjunto nunca estivemos, nem estamos, muito longe da verdade." Intrigas - As crônicas de Julio Mesquita eram imparciais. Descreviam sem favorecimentos os movimentos determinados pela sorte das armas e pelas intrigas da política. Mas não eram neutras. Suas simpatias estavam, franca e escancaradamente, ao lado da França e da Bélgica, países invadidos pelos alemães, e da Inglaterra. Eram os países mais democráticos da Europa, cuja existência estava ameaçada por um regime militar, que queria submeter o continente pela força das armas, traindo pela violência indiscriminada um legado de cultura que havia honrado o Ocidente. Na crônica de 17 de outubro de 1917, Julio Mesquita usa um episódio ocorrido no principío do mês para passar juízo definitivo sobre a Alemanha do kaiser: "Os chefes do exército e da marinha calçaram as botas, ataram as esporas, desembainharam a espora e foram à porta do Reichstag, da representação nacional, para intimá-la, com palavras ásperas e ameaçadoras, a não cuidar de paz. A organização está-se desorganizando; já se desorganizou. O império não era, nunca foi, senão um amplo quartel de severa disciplina militar, garantida por uma rigorosíssima hierarquia social. O militarismo, porém, havia conseguido imprimir uma aparência de espontaneidade a essa escravização coletiva. Esta aparência caiu como uma máscara, levando consigo para o chão a pele e a carne do rosto disfarçado; ficou patente a caveira hedionda da odiosa ditadura do sabre, que não é senão um chicote menos flexível e mais reluzente." Antes, tratando da aspiração alemã de domínio universal e das doutrinas supremacistas que germinavam na Alemanha e dividiam os povos em "selvagens", "individualistas" e "organizados", fizera uma ode à liberdade de imprensa: "No regime da organização não há jornalismo possível, porque os jornais vivem das informações que transmitem aos seus leitores, e as informações valem tanto quanto se aproximam da verdade. Vivam os individualistas! É deles que nos vem a vida, é com o auxílio deles que vamos criando e aumentando a nossa força e o nosso prestígio. Povos individualistas são os que, como se sabe, não se escravizam à onipotência e onisciência do Estado. São os que, mesmo nas suas crises supremas, não vão até o abandono total dos seus foros. São os que exigem que, em caso algum, o Estado os aniquile. São os que nunca perdem o direito de fiscalizar a ação do governo. São os que querem que os governos sejam fiéis nos seus relatórios. São os ingleses, são os franceses e, por dever de aliança, também são agora os russos selvagens." Nas suas crônicas semanais, Julio Mesquita evitava fazer previsões. E não confiava nos videntes que usavam "dados matemáticos" para antecipar o futuro do conflito. Três anos depois de iniciada a guerra, glosava os especialistas que haviam dito que a guerra não duraria mais de seis meses; que nenhum país beligerante tinha recursos para financiar um conflito prolongado; que as indústrias não teriam como fornecer munições e materiais para a grande carnificina; que em cada país faltaria comida e, logo em seguida, a vontade nacional esmoreceria, obrigando os políticos a terminar a guerra. Princípio - Mas, apesar de seus propósitos, Júlio Mesquita não escapou de fazer alguns prognósticos. Ainda em agosto de 1914 afirmou que a guerra seria longa. Estimou, também, que a paz não poderia ser alcançada, senão com a derrota da Alemanha - o que depois o presidente Wilson firmou como princípio ao recusar as gestões do papa que, se aceitas, deixariam a Alemanha sair do conflito sem estar derrotada e, portanto, sem pagar o preço da agressão. Teve a premonição do que faria Lênin, "aquele célebre energúmeno de extremadas idéias socialistas". "Com indivíduos desta espécie não há que fiar", sentenciou. Mas o que mais impressiona são as palavras que escreveu em 2 de novembro de 1914: "É provável que os Aliados a esmaguem (a Alemanha), mas o mundo ainda tem muito que ver antes que comece a agonia do gigante e, para sermos sinceros, temos que confessar que não será sem muita dor, e muita indignação, que assistiremos a esse grandioso e tristíssimo espetáculo. Por que haveria de querer a fatalidade que assim possam, num instante, um homem e um partido alucinados deitar abaixo essa robusta construção, que parecia a glória imortal dos seus antepassados e era o orgulho de todo o gênero humano?" Um quarto de século depois, na mesma Alemanha e em nome do mesmo pan-germanismo que inspirou o kaiser, um homem alucinado e seu partido jogariam o mundo, novamente, nos horrores da guerra. Especial: "A Guerra"

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