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No Brasil, Saramago fala de literatura e poder

O escritor português está em São Paulo para apresentar seu romance O Homem Duplicado. Em entrevista ao Estado, o Nobel de 98 fala de sua obra e comenta a situação política na América Latina

Por Agencia Estado
Atualização:

Uma grande expectativa cerca a palestra do escritor português José Saramago, hoje, às 20 horas, no Teatro do Colégio Santa Cruz (Rua Orobó, 277). Desde seu rompimento com Cuba, oficializado no mês passado por meio de uma carta publicada no jornal espanhol El País, o prêmio Nobel de literatura de 1998 é questionado sobre sua crítica ao regime do ditador cubano Fidel Castro, devido à onda de repressão a dissidentes e à execução de três seqüestradores de um barco que queriam fugir para os Estados Unidos. Graças à curiosidade, todos os 600 ingressos para a palestra já estão esgotados. "Rompi com Fidel e não com o povo cubano, que ainda tem minha solidariedade", disse o escritor em entrevista ao Estado, na manhã de sexta-feira, em uma fria suíte de um grande hotel de São Paulo - ele manteve a temperatura constante nos 19 graus. No roteiro da palestra, está previsto que Saramago vai apresentar seu mais recente romance, O Homem Duplicado (Companhia das Letras, 320 páginas, R$ 37), além de ler alguns trechos. O livro trata da perda de identidade quando um professor de história, Tertuliano Máximo Afonso, descobre que um ator tem exatamente as suas características. No encontro de hoje, não está prevista a realização de debate, mas o escritor pretende satisfazer seus leitores tratando de assuntos pontuais - apesar de garantir que não pensa neles quando escreve. O senhor diria que "O Homem Duplicado" é uma obra engajada? José Saramago - Engajada? Não sei. Uma leitora me disse, há dois meses, que o livro é antimachista ao mostrar um certo tipo de comportamento masculino, especialmente na relação de Tertuliano com sua noiva. Engajado na tentativa de ser a exploração do tema do outro e do eu, isso sim, eu concordo. A discussão sobre a perda da identidade é uma conseqüência em sua obra, depois de tratar sobre a falta de visão atual do mundo (Ensaio sobre a Cegueira) e a incapacidade de viver na sociedade de consumo (A Caverna)? Não tenho um plano de obra, pois cada livro aparece sem ter relação com os outros. Não há uma certa pesquisa para completar em um livro o que ficou incompleto no outro. No entanto, desde Ensaio sobre a Cegueira, o foco de meu interesse de fato se deslocou, pois o ponto de vista, em lugar de ser amplo, afunilou-se. Em O Homem Duplicado, durante essa procura de Tertuliano pelo outro, a pergunta que se apresenta como crucial é: quem sou eu? Ou seja, quando ele se transforma em outra pessoa, onde é que fica o seu eu? Essa é a questão central. Mas nada disso resulta de um plano de escrever, mas de uma fatalidade orgânica. É o que mostra as circunstâncias em que o livro nasceu: eu estava me barbeando e, de repente, me surgiram as palavras do título. Depois, tive de inventar a história necessária para esse título. Talvez se não se falasse tanto de clonagem, a idéia não teria aparecido, mas não sei. Um escritor tem uma missão esclarecedora? Sim, mas não que seja uma missão esclarecedora para os outros, mas de si mesmo. Um escritor reflete sobre seu tempo e sua obra invariavelmente, mesmo que o autor não tenha querido, vai expressar isso. O escritor pode estar mais ou menos consciente disso e sua obra se torna um esforço de compreensão de si mesmo e sobre sua relação com o mundo. Com isso, pode ser acompanhado por uma quantidade variável de leitores. Nesse mundo caótico de hoje em dia, o que torna o indivíduo único? Um mundo como esse, indefinido, faz com que cada um se refugie em sua própria individualidade. Continuamos como animais gregários. (Aponta para a janela em que se vislumbra o congestionamento da Avenida Nações Unidas) São Paulo é uma demonstração clara de como até que ponto se pode mudar o organismo social, com filas e filas de carros. Mas é como se tudo estivesse fragmentado para continuarmos juntos, não para nos dispersarmos. Aí perde-se o sentido de comunidade, o que sempre tornou o humano um ser coeso. Portanto, voltando ao livro, a expressão do indivíduo aparece quase de forma patológica, ou seja, Tertuliano Máximo Afonso não suporta a presença do outro que se pareça com ele, pois acontece uma usurpação de espaço que, por sua vez, torna a situação insuportável. O que o senhor julga importante em um debate sobre a democracia, que o senhor disse ser uma discussão não levantada? Temos de decidir efetivamente se o sistema atual é de fato uma democracia. Do meu ponto de vista, não é. E, claro, falar de democracia implica evidentemente falar de poder. Lincoln dizia que democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo. É uma forma magnífica e sintética, mas tal participação acontece, por meio de eleições, somente até a escolha de um governante. O poder mais determinante está mais acima, que são os econômicos. E eles não são evidentemente democráticos. Precisamos não nos deixar enganar e discutir de fato a democracia, nem que levem anos. Provavelmente, não se chegaria muito longe, pois o poder econômico não se deixaria controlar, mas seria uma tentativa. Não é o presidente ou o primeiro-ministro que controlam nossas vidas, pois a realidade do mundo mostra que os governos se transformaram nos comissários políticos do poder econômico e, algumas vezes, com cumplicidade. É preciso se discutir a questão dos direitos humanos, inerentes a uma democracia. O presidente Lula fala sobre isso e é um caso excepcional. É uma voz que se junta à de escritores, filósofos, sociólogos, cidadãos que não governam. Trata-se, acredito, do grande tema deste novo século. Quando Lula foi eleito presidente, o senhor alertou contra a possibilidade de surgimento de um messianismo. Ainda teme isso? Não, mas há um risco ao se colocar todas as esperanças em uma só pessoa. E não há ninguém que possa carregar todas as preces de um povo. E sem se esquecer dos efeitos perversos que essa forma messiânica de identificar o poder provoca. Cheguei ontem (quinta) de Buenos Aires e, se há um lugar no continente onde o messianismo impregnou toda a sociedade, é a Argentina e seu peronismo. O poder é paternalista e do qual tudo se depende, justificando que um candidato moralmente injustificável, como é o senhor (Carlos) Menem, tenha ainda alcançado 25% de votos na eleição presidencial. Em todo caso, parece que não vai ganhar e sim outro peronista. Eu dizia em Buenos Aires, enquanto as pessoas não enterrarem os fantasmas do passado do peronismo, que sempre se corrompem, não darão um passo adiante. A Argentina, da mesma forma que o Chile, sofre um problema sério que é um vazio generacional. Aquelas pessoas que estariam hoje com 50 anos são os 30 mil desaparecidos no governo militar. Há uma espécie de permanência de um peronismo já quase arcaico e que se beneficia com o desaparecimento de uma geração com idéias de esquerda. Espera-se que a nova geração tome consciência de que isso não pode continuar. Qual sua avaliação sobre a reação mundial a respeito de sua ruptura com Fidel Castro? Houve diversas reações esperadas. Do governo cubano, aconteceu, claro, um desconcerto, um desacordo. E, dos inimigos de Cuba, pensou-se, de forma equivocada, que eu tinha passado para o lado deles. Afinal, minha solidariedade com o povo cubano continua intacta. Não quero discutir se me distanciei da revolução cubana. Na verdade, foi ela que se distanciou de si mesma. Não mudo uma palavra do que está na carta. O prêmio Nobel da Paz de 1980, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, que apóia Fidel, pensa que "Cuba é um pretexto para os Estados Unidos militarizarem ainda mais a América Latina". O que o senhor acha disso? Os Estados Unidos não precisam de Cuba para isso. Como eles estão interessados no domínio do mundo, por que deixariam a América Latina, que sempre foi seu fundo de quintal, de fora? A intervenção americana aqui foi constante. Eles sempre tiveram idéias muito claras. Quando se dizia que o presidente Noriega, da Nicarágua, era um filho da p..., eles respondiam: "Sim, é um filho da p..., mas é o nosso filho da p..." Os americanos declaradamente não têm amigos, mas interesses. Por isso apostaram tanto nas ditaduras como nas democracias posteriores. Quando Colin Powell (secretário de Estado americano) disse que o Chile seria perdoado por votar contra a invasão do Iraque no conselho de segurança da ONU, isso foi de uma tremenda insolência. Apesar dos atentados terroristas às torres de Nova York e da guerra contra Saddam Hussein, os Estados Unidos vão outra vez olhar para a América Latina. Portanto, podem contar que os americanos não se esqueceram de vocês. E tudo isso é feito em nome da democracia. Como está seu projeto de lançar um romance policial que tem Alexandre Dumas como personagem? Tenho realmente uma idéia que comecei a trabalhar. A obra vai se chamar O Mistério do Dente Perdido e vai figurar na coleção Literatura e Morte, da Companhia das Letras. E vou conciliar esse trabalho com outro livro, que começo a escrever em junho. Será um romance que se chamará Ensaio sobre a Lucidez. Não digo nada, apenas que é um livro que vem se impondo e que me põe nervoso, impaciente. Estou com uma excitação enorme para começar a escrever. Espero lançá-lo em maio do ano que vem. Como já tenho 80 anos, o sentimento de urgência da obra que quer ser feita me faz lembrar sempre dessa idade. E o Livro das Tentações? Este, coitado, é uma vítima antiga, de mais de 15 anos! Já tenho muita coisa escrita, basta organizar meu tempo, terminar o período de viagens para me pôr a trabalhar.

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