'Ninguém convida um chef para jantar'

À frente da cozinha do Hotel Unique - e comandando 60 funcionários -, o francêsse considera praticamente brasileiro e elogia o potencial da gastronomia do País.

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Por Marilia Neustein
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Há doze anos, o reconhecido chef Emmanuel Bassoleil recebeu um convite desafiador: comandar a área gastronômica do Hotel Unique, em São Paulo. A ideia de trabalhar em hotel, que então lhe parecia "impensável", hoje é sua paixão. Coordenando 60 funcionários - "durante 24 horas por dia, 365 dias por ano", divididos entre a cozinha do hotel e o restaurante Skye, Bassoleil celebra o próspero momento da gastronomia no Brasil. No Brasil desde 1986, ele diz que tem paladar simples e admite que a profissão de cozinheiro no País, é hoje muito mais valorizada. As opções gastronômicas, afirma, principalmente em São Paulo, vêm aumentando exponencialmente. Observa que muita gente supõe que chef seja um sujeito exigente: "Ninguém convida um chef para jantar em casa". Ao contrário, ele garante: "Pode não parecer, mas agradar a um chef é a coisa mais simples do mundo: você bota uma salada, queijo e um vinho e pronto". A seguir, os melhores trechos da entrevista. Como e por que você veio para o Brasil? Vim para cá em 1986, quando me casei com a minha primeira mulher, que é brasileira. Conhecia o Brasil como turista, mas, quando você vive com uma pessoa, quer falar o idioma, entender o país. E como começou a carreira por aqui? Batendo de porta em porta. Fui ao La Casserole, falar com o dono do Freddy, contatei o pai do Claude Troisgros, pois havia trabalhado para ele na França. O Claude morava no Rio e tinha acabado de abrir um restaurante em São Paulo. Conversamos e, depois de meia hora, ele me ofereceu emprego. Eu nem falava português, mas ele me fez uma proposta irrecusável. Há 30 anos na cidade, você gosta de São Paulo? Adoro. Sou bem urbano. Gosto de um lugar bem tranquilo, mas não viveria no campo. Sou um sujeito muito agitado, preciso de informações, de sentir o dia a dia. São Paulo está muito atrás das grandes metrópoles em serviços e restaurantes? Há 28 anos era bem mais difícil. Talvez hoje não fique mais atrás, muitas coisas melhoraram. Veja a minha profissão. Fui o primeiro chef a servir sopa em uma xícara de café aqui. As pessoas me xingavam, falavam: "Tá louco o cara?" (risos). Durante oito anos também fiquei conhecido como "o cara da sobremesa", porque não havia confeiteiros aqui. Hoje, todo mundo sabe o que é um confeiteiro. De que você mais teve saudade da França quando chegou ao Brasil? E como é hoje em dia? Adoro a palavra saudade, mas volto duas ou três vezes por ano para a França. Como profissional, talvez sinta falta de uma ou outra matéria-prima, mas também sei das dificuldades que meus colegas estão passando por lá. Não existe mais o mesmo amor, a mesma paixão. O que acha que mudou na imagem que se tem de um chef? Nos anos 70, o chef começou a sair da cozinha, a ser reconhecido mundialmente. Sabe essa coisa de vender seu nome, sair na Playboy segurando uma panelinha? (risos) Fazer publicidade de fogão, frigideira, liquidificador? Isso não existia. A caricatura do chef de cozinha era um cara barrigudo, sempre com um pano sujo em cima do ombro. O cozinheiro era considerado uma pessoa sem cultura... Daí veio essa geração que começou a aparecer em revista de moda, a participar de desfile. A partir daí, mudou totalmente. Chef de um restaurante ou de hotel: é diferente? É outra profissão. Usamos o mesmo uniforme, mas as responsabilidades são outras. Durante 15 anos, eu papariquei clientes, atendia a 3 mil pessoas por mês. Hoje, atendo a 59 mil. O que eu fazia em um mês faço em dois dias. Nunca imaginava ser chef de um hotel, mas me apaixonei pela história, pelas pessoas. Dirigir um hotel é servir 24 horas, 365 dias por ano. O que é que você gosta de comer no dia a dia? Para mim, a melhor comida é a mais simples. E de 15 anos para cá minha alimentação mudou completamente. Antes, eu enfiava o pé na jaca. Tomava café da manhã, almoçava, bebia à tarde, podia jantar com a minha mulher às 8 horas e, depois, cair na gandaia até as 3 da manhã, comer hambúrguer às 4 da manhã. Agora mudei. Minha geladeira só tem fruta. Adoro uma vitamina. E, depois, muita salada e queijo. Adoro queijo. Do mais fedido ao mais cremoso. Está aí uma coisa de que eu tenho saudade da França: o queijo. Gosta de comer sua própria comida ou prefere a dos outros? Experimento tudo, eu sou um guloso por natureza. E mais: não consigo experimentar só uma colher, vou experimentar mais vezes, porque a primeira é para preparar e só na segunda é que você vai sentir. A culinária brasileira é criativa? Minha comida brasileira preferida é a mineira. Amo a Bahia também, essa coisa da "mama" que vai colocando alho, dendê, camarão, peixe, tudo na panela. Mas a melhor é a mineira. Por quê? Porque é completa. Lembra um pouco a gastronomia francesa. O mineiro respeita cada ingrediente, cada coisa é separadinha. Tem a cachaça, o queijo, o pão de queijo, o lombinho... Aquela mesa arrumadinha, o tropeiro. Tem a couve refogadinha, o inhame, o maxixe. E o mineiro gosta de comer, gosta de falar da comida, do queijinho dele. A comida não é um acessório. Você costuma cozinhar em casa ou sai para comer fora? Nunca cozinhei em casa. Até dois anos atrás, nem tinha cozinha em casa. Quando posso, vou jantar fora, gosto de ser servido. Sabe qual é o problema do cozinheiro? A gente nunca recebe convite. Ninguém convida um chef pra jantar, para comer na sua casa. As pessoas acham que a gente é muito exigente, um chato. Mas agradar a um chef é a coisa mais simples do mundo: você bota uma salada, um queijo, uma garrafa de vinho... e pronto. Mas sabe o que é pior? O quê? É quando as pessoas te convidam. Sabe o que realmente elas querem? Que você cozinhe para elas. Esse convite eu não aceito nem morto (risos). Quando eu era iniciante, aqui, não sabia disso. O cara me convidava para um churrasco e lá estava todo mundo, à beira da piscina, num domingo. De repente, o cara vinha: "Ô, Emmanuel, vamos para a cozinha, vamos brincar?" (risos). Hoje, não vou mais. Então você vai passar a cozinhar em casa? Calma (risos). Só agora estou, enfim, conseguindo montar uma estrutura para um dia, quem sabe, voltar a cozinhar. Você aprecia a chamada "baixa gastronomia"? Uma coxinha, um pastel? Eu sou ligado em tudo. É como música. Escuto rock, MPB, sertanejo. Acho que um cozinheiro precisa saber de tudo um pouco. E gosto da comida simples, sim. Uma vez ou outra, eu teria mais encanto em comer uma coxinha do que um prato sofisticado. Na cozinha, você faz a linha chef boa gente ou tem estilo mais bravo? Isso depende do perfil da pessoa. Às vezes, o brasileiro mistura seriedade com dureza. Falam assim: "Esse cliente é chato". Mas por que ele é chato? Se o cara não gosta de cebola, nem de alho, ou de pimenta, na verdade, ele é o melhor cliente, porque você já sabe tudo que ele não gosta. Então, o mito do chef durão é falso? Claro que, hoje, você consegue muito mais ibope se fizer o tipo linha dura do que o bonzinho. O cara que sabe administrar, dizer que ele é bom chef, qual a graça? Olha, eu sou uma pessoa superexigente. A cozinha é como uma banda, cada um tem a hora certa de entrar com seu instrumento. É trabalho em conjunto, um ambiente de muita pressão e muita concentração. Aqui no Unique, por exemplo, temos 60 pessoas na cozinha. Gente de diferentes níveis e nacionalidades. Argentino, italiano, mexicano, francês, irlandês. Todos têm de desempenhar sua função na hora certa. Voltando ao cliente "chato", o hábito daqui de modificar o prato não acontece com tanta frequência na França, não é? Isso é coisa daqui mesmo. Um pouco pela tradição da comida em volta da mesa ou do hábito de ter uma cozinheira em casa - aquela a quem as pessoas pedem: "faz um feijãozinho assim para mim", "o meu é sem tempero". Então, as pessoas criaram esse hábito de mudar o cardápio, colocar um brócolis, tirar algo. Aí, a pessoa vai ao restaurante e acha que pode fazer como faz em casa. Mas nos restaurantes existe um sujeito na cozinha que vai fazer um trabalho para mostrar - é o chef. É uma mesa diferente da mesa da sua casa. / Marilia Neustein

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