Nikolai Dejnióv é lançado no Brasil

Primeiro romance do economista russo Em Ritmo de Concerto é uma aventura estimulante, e até mesmo algumas imprudência e exageros do escritor estreante se tornam motivos de prazer

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Por Agencia Estado
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A Rússia pós-soviética parece conservar a força secular de sua literatura, a julgar ao menos por esse primeiro romance de Nikolai Dejnióv, um físico e economista que faz sua estréia na ficção com grande desembaraço. Em Ritmo de Concerto (Objetiva, 340 pág., R$ 34), lançado em Moscou em 1995 e já traduzido em nove línguas, não é, devemos adiantar logo, um livro excepcional. Com um projeto ficcional complexo, que por vezes parece maior que as próprias pernas, Dejnióv está às vezes um pouco perdido, em outras se alonga em demasia, torna-se retórico, desviando-se por sendas dispensáveis, e aqui e ali perde o controle do volante literário; mas, como um adolescente audacioso, o principal no seu caso é a energia incomum que o impulsiona - e em nome dela toda essa série de deslizes, de rompantes de estréia, fica atenuada. Apesar dessas restrições, o romance de Dejnióv (que mistura teologia, história, mitologia, folclore e fantasia, de modo bem pouco ortodoxo para um cientista) pode ser lido com grande satisfação. Laços de parentesco difusos com autores como Poe, Pynchon e García Márquez, em particular com o realismo mágico deste último, já apontados pela crítica internacional, não bastam para explicar o vigor de sua escrita. Há em Dejnióv, apesar de todos os embaraços, uma dose de talento, que só livros futuros poderão confirmar ou não. Já Dostoievski dizia que todos os grandes escritores russos vieram de Nikolai Gogol e, em particular, de O Capote sua narrativa mais célebre. Gogol, em certa medida, muito antes do colombiano García Márquez, já manejava aspectos de um realismo fantástico, elementos que Dejnióv agora retoma. Alguns chegam a afirmar, estimulados não só por Gogol e Dostoievski, mas por Tolstoi, Turgueniev, Pushkin e Chekhov, que a grande literatura do século 20, as narrativas mais densas e complexas, se originaram na Rússia. Embora habitem mundos completamente diferentes, não se pode negar que algumas das portas abertas por Gogol e seu O Capote são, agora que as amarras do realismo socialista foram definitivamente quebradas, recriadas por Dejnióv. É verdade que o motivo de Em Ritmo de Concerto, que tem por vezes a aparência de um conto de fadas, não chega a ser novo: García Márquez já o exercitou em um dos contos de Cândida Erêndira, e nós já vimos algo parecido, afora as banalizações posteriores produzidas por Hollywood, num filme assinado por Wim Wenders. É a história de um anjo caído - que desce justamente na residência de uma velhíssima funcionária do Partido Comunista, Kovaliévskaia. Logo depois de ouvir no rádio o boletim matinal do partido, a velha vem a morrer. Lucário (esse é o nome do anjo extraviado, que volta à Terra para expiar pecados antigos) é, na verdade, um "domovoi", isto é, um tipo russo de fantasma caseiro - no folclore russo, uma forma de duende. Tem a sorte de ser o único espírito escalado para assombrar a casa da velha comunista, o que facilita em parte sua tarefa. Só não contava que fosse tropeçar com a morte e que, em decorrência dela, o mais estridente dos sentimentos humanos, a paixão, viesse bloquear seu caminho. Trapaças - Dejnióv constrói, com a história do anjo caído, uma aventura bastante moderna, com tons hiper-realistas, fazendo avançar a ficção científica a patamares que ultrapassam a ciência solene dos sovietes e que ganham, com os ventos antigos que passam a soprar depois do fim do comunismo, tonalidades filosóficas e até teológicas. Não chega a ser surpreendente que um universo hiperexpandido como o de Em Ritmo de Concerto, em que os planos físico e astral se fusionam sem dificuldades, sem cerimônias de quaisquer espécies, tenha sido tramado por um físico. E que um universo cheio de trapaças, de ambivalências e de charadas, como o reinante no livro, tenha sido construído por um escritor que é também um eminente economista. Quando a funcionária Kovaliévskaia morre, seu apartamento é herdado por Ana, sua sobrinha, uma diretora de TV, casada com um físico, Serguiêi, cientista obstinado pelas pegadas de uma descoberta teórica que o deixa às portas da loucura. O problema maior é que Ana é uma bela mulher e Lucário, o espírito, conselheiro do Departamento das Forças da Luz, quebrando as regras do plano astral, por ela se apaixona. Ele tem ainda de lutar contra seus rivais, alinhados no Departamento das Forças das Trevas, destravando assim poderes enlouquecidos, que misturam os cânones da religião com as leis impassíveis da física. É dessa mistura explosiva que Lucário, ou Luca, também se vale para assombrar o casal, na esperança de que ele se separe e Ana, por fim, venha a ser sua. Por sua obra, no apartamento da velha funcionária materialista, objetos passam a se mover e a voar sozinhos, a TV russa começa a falar em chinês, as escovas de dentes passam a dar choques e algum imprevisto sempre interrompe o casal quando, em seu último refúgio, a cama, ele se empenha na arte do amor. Traquinagens de um fantasma não só vingativo, mas ciumento, que não poupa seus poderes celestiais para conseguir o que quer. Viver como fantasma no velho apartamento moscovita, antes um castigo, agora se transforma num bem (e mais uma vez bem e mal se entrelaçam, confundindo-se, fusão que, Dejnióv nos leva a pensar, só confirma a falência das dualidades como instrumentos de conceituação do mundo, seja a Rússia antiga dos czares, a Rússia vermelha dos sovietes, ou ainda a Rússia pós-moderna de contrabandistas e mafiosos). Ainda assim, é em um antípoda, Sierpiná, conselheiro do Departamento das Forças das Trevas, que Luca encontra seu pior inimigo. Os adversários, contudo, podem estar bem do seu lado, como ocorre com Chepetukha, um anjo do Bem que circula pela narrativa com a única missão de espionar as atitudes de Lucário, sendo a espionagem, afinal, um ingrediente nobre da vida russa ao longo de todo o século. A atmosfera de mistério que as longas décadas de comunismo lançaram sobre a Rússia, desfigurando-a ainda que nela injetando brio e um projeto existencial, como se os anjos das luzes e das trevas vestissem as mesmas camisetas vermelhas do partido, essa cortina de sombras e suspeita agora parece adequada a Nikolai Dejnióv. Manipulando-a, ele pratica uma literatura a meio caminho entre o realismo fantástico à moda de Márquez, o surrealismo no velho estilo europeu do início do século e até o esoterismo atual - tudo compactado, num amálgama que lhe serve como instrumento para fotografar a Rússia contemporânea. Com impressionante desenvoltura, os personagens de Dejnióv transitam livremente entre o mundo astral e o mundo material, movendo-se no tempo, fazendo piruetas no espaços, num vaivém que eletrifica a mente do mais pacato leitor. Em dado momento, Lucário, agora chamado Lukin, chega a viajar de volta à Rússia de 1932 para reencontrar uma encarnação anterior de sua amada Ana, aproveitando para envolver-se num plano secreto para assassinar Joseph Stalin. A sangrenta história russa do século 20, dessa forma, dissolve-se num mundo improvável, mas sedutor de espíritos, fantasmas, duendes e demônios e essa impregnação, longe de parecer inadequada, soa verdadeira e vem até mesmo emprestar nitidez aos personagens em cena. O romance de Nikolai Dejnióv confirma, em certa medida, a legenda de uma Rússia que atravessa a história, que é quase a-histórica, ou imune ao desgaste do tempo, no fundo sempre bárbara e impenetrável, sobrevivendo ela também, a czares, a sovietes e a mafiosos, como um fantasma glorioso. Ao trabalhar com a tradição das lendas folclóricas russas, com personagens impregnados no imaginário popular, com seus fantasmas mais sagrados, Dejnióv exacerba esse elemento extratemporal, aspecto volátil que nem por isso retira de seu livro a capacidade de radiografar, até com alguma rudeza e violência, apesar da inegável verve cômica que o atravessa, a Rússia pós-soviética. Parte da crítica literária dos Estados Unidos, país onde "Em Ritmo de Concerto" foi saudado com grande entusiasmo, já apontou a fragilidade destemperada da escrita de Dejnióv, com suas manobras imprudentes de iniciante, em particular quando ele se move do mundo astral para o da retórica, deixando-se vencer por uma obsessão pelos detalhes inúteis, elementos que emperram o ritmo da narrativa, desviando a atenção do leitor - como se o anjo caído, saindo da ficção e tomando a mente do autor, agora agisse sobre seu próprio criador, Nikolai Dejnióv. Assim, a leitura por vezes se torna penosa, dispersiva, mas logo à frente o escritor recupera o fôlego, parece se reencontrar e é, por fim, sua imaginação caudalosa que se impõe. Por tudo isso, a leitura de Em Ritmo de Concerto é uma aventura estimulante, e até mesmo algumas imprudência e exageros do escritor estreante se tornam motivos de prazer; pois é com a vida concreta da Rússia de hoje, tempestuosa e cheia de fissuras que o leitor se reencontra.

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