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Nietzsche em Sils Maria

Foto do author Mario Vargas Llosa
Por Mario Vargas Llosa
Atualização:

Quando Nietzsche veio pela primeira vez a Sils Maria, no verão de 1879, era uma ruína humana. Estava perdendo a vista a passos rápidos, era atormentado pelas enxaquecas, e as enfermidades o haviam obrigado a renunciar à cátedra na universidade de Basileia, onde lecionara por dez anos. Esta era então uma remota região alpina na alta Engadina, onde só vinham forasteiros. Foi um amor à primeira vista: ele ficou deslumbrado com o ar cristalino, o mistério e o vigor das montanhas, as numerosas cascatas, a serenidade dos lagos e das lagoas, os esquilos e até os enormes gatos monteses. Começou a melhorar, escreveu cartas exultantes de entusiasmo pelo lugar e, desde então, voltou por sete anos consecutivos a Sils Maria no verão, por temporadas de três ou quatro meses. Sempre fora um apreciador das caminhadas, mas, aqui, andar, subir por encostas íngremes, meditar nas alturas varridas pelos ventos onde às vezes aterrissavam as águias, rabiscar em seus caderninhos os aforismos, um dos seus meios de expressão favoritos, converteram-se num modo de vida. Em Sils Maria escreveria ou conceberia seus livros mais importantes, A Gaia Ciência, Assim Falou Zaratustra, Além do Bem e do Mal, O Crepúsculo dos Deuses, O Anticristo. Costumava hospedar-se na casa - que era também loja - do prefeito da aldeia, e pagava pelo modesto quartinho onde dormia um franco por dia. A casa de Nietzsche é agora um museu e a sede da fundação que tem o nome do filósofo. Vale a pena visitá-la, principalmente se o cicerone é seu amável diretor, Peter André Bloch, que sabe tudo sobre a obra e a vida de Nietzsche e organiza seminários e palestras que atraem para este belo lugarejo professores, ensaístas e filósofos do mundo inteiro. A casa foi totalmente restaurada e oferece uma soberba coleção de fotografias, manuscritos - entre eles de poemas e composições musicais de Nietzsche, primeiras edições e testemunhos de visitantes ilustres, como Thomas Mann, Adorno, Paul Celan, Hermann Hesse, Robert Musil e até o inesperado Pablo Neruda, que escreveu aqui um poema. Boris Pasternak não pôde vir, mas enviou do seu confinamento soviético um longo texto fundamentando sua admiração pelo filósofo. O único quarto que não foi restaurado é o dormitório de Nietzsche. Ele surpreende pelo ascetismo. Uma pequena cama estreita, uma mesa rústica, uma bacia e um lavatório. Testemunhos da época afirmam que costumava estar repleto de livros. Mas o certo é que Nietzsche passava grande parte do tempo mais ao ar livre do que na casa, e que pensava e escrevia andando ou descansando entre as longas caminhadas diárias. Duravam umas seis horas, todos os dias, e às vezes oito ou mesmo dez. Agora, os guias mostram aos turistas alguns itinerários que, afirmam, eram seus preferidos, mas é pura lenda. Em primeiro lugar, a paisagem agora é diferente, civilizada pela afluência maciça de esquiadores durante o inverno, a abertura das estradas e pelos chalés espalhados ao redor das pistas de esqui. Na época de Nietzsche, esta era terra ainda selvagem, sem trilhas, abrupta. Depois de uma difícil caminhada em meio a pinheirais e a picos nevados, quase na sombra, abria-se de repente uma paisagem paradisíaca, como a que inspiraria as bravatas e as filípicas de Zaratustra. Muitas vezes, Nietzsche se perdeu nestas alturas desoladas, outras vezes, adormeceu e teve sonhos grandiosos ou terríveis que evocou em seus poemas e em sua música. Levava sempre nestas caminhadas um pequeno farnel com frutas e biscoitos, e os livrinhos com pautas enviados por sua irmã Elizabeth (podem ser folheados no museu), fanática racista que, para justificar o calunioso boato segundo a qual Nietzsche foi um precursor do nazismo, falsificou seus manuscritos e produziu uma edição espúria de A Vontade de Poder. Em uma das estantes da Fundação está exposta a célebre foto de Hitler visitando, acompanhado por Elizabeth, o Memorial de Nietzsche em Weimar. Muitas das diatribes de Nietzsche contra a religião e, sobretudo, contra o cristianismo - a ideia de proclamar que a vida terrena é uma mera passagem para o além, onde se vive a vida verdadeira, foi o maior obstáculo para que os seres humanos fossem soberanos, livres e felizes e fossem condenados a uma escravidão moral que os privou de criatividade, de espírito crítico, de conhecimentos científicos e iniciativas artísticas - foram concebidas aqui, em Sils Maria. Mas, curiosamente, contrariando uma das imagens mais persistentes de Nietzsche, a de um homem esquivo, sombrio e ensimesmado, resmungão e colérico, pelo menos nos sete anos em que passou os verões aqui, deixou entre os vizinhos uma imagem radicalmente diferente: a de um homem risonho e simpático, que brincava com as crianças, ria das brincadeiras dos aldeões, e evitava as bisbilhotices e as brigas da vizinhança. É verdade que nunca foi um fascista nem um racista; um setor do museu documenta com detalhes seu bom relacionamento com muitos intelectuais e comerciantes judeus, e as vezes em que escreveu criticando o antissemitismo. Mas também é certo que nunca foi um democrata nem um liberal. Detestava as multidões e, particularmente, as massas da sociedade industrial, nas quais via seres alienados pela “psicologia do vassalo” que engendra o coletivismo, anula o espírito rebelde e mata a individualidade. Foi sempre um individualista recalcitrante; acreditava que somente o ser humano não gregário, independente, segregado da tribo, capaz de confrontá-la, era capaz de fazer progredir a ciência, a sociedade e a vida em geral. Sua terrível sentença, que era também um prognóstico sobre a cultura que prevaleceria no futuro imediato - “Deus morreu” - não era um grito de desespero, mas de otimismo e esperança, a convicção de que, no mundo futuro, libertados das correntes da religião e da mitologia alienante do além, os seres humanos trabalhariam para tirar o paraíso das névoas ultraterrenas e o trariam para a terra, para a história vivida, para a realidade cotidiana. Então desapareceriam os estúpidos ressentimentos que abarrotaram a história humana de guerras, cataclismos, abusos, sofrimentos, barbárie, e surgiria uma fraternidade universal na qual, enfim, a vida valeria a pena de ser vivida por todos. Era uma utopia não menos irreal que a das religiões que Nietzsche abominava, e que também faria derramar muito sangue e dor. No fim, seria a democracia, que o filósofo de Sils Maria tanto desprezou, pois a identificava com o conformismo e a mediocridade, que mais contribuiria para aproximar os seres humanos deste ideal nietzschiano de uma sociedade de homens e mulheres livres, dotados de espírito crítico, capazes de conviver com todas as suas diferenças, convicções ou crenças, sem se odiarem nem matarem uns aos outros. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA 

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