PUBLICIDADE

Neruda na voz de plácido

Autor de O Carteiro e o Poeta, Antonio Skármeta relata a emoção de acompanhar a versão para o palco do romance

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

Quando as cortinas se ergueram para o início da ópera Il Postino (O Carteiro e o Poeta) em sua estreia mundial em Los Angeles, em setembro, vieram à minha memória todos os momentos que levaram essa minha obra àquele apogeu.O Carteiro nasceu na época da ditadura de Pinochet como uma comovente lembrança no meu exílio em Berlim Ocidental, do Chile democrático que vivi e desfrutei até o golpe de 1973, que submeteu meu povo à violação de direitos humanos, deu início a um período de barbárie e enviou centenas de intelectuais para o exílio.Ao escrever meu romance O Carteiro e O Poeta (Record), o que me impeliu foi a necessidade de recuperar o modesto e imperfeito paraíso que tinha perdido: aquele Chile onde o poeta estava próximo das pessoas e elas sentiam que o poeta falava por elas. Um país onde estávamos conseguindo aprofundar a democracia com alegria e imaginação, sem suspeitar que, repentinamente, muitos pagariam com suas vidas por esse façanha realizada com afeto.Desde o primeiro momento, minha obra emigrou rapidamente para outros gêneros. Ainda não tinha concluído meu trabalho quando um produtor alemão leu alguns capítulos do romance e propôs-me escrever a história de Pablo Neruda e o Carteiro como um roteiro de um filme. Confuso diante da sua generosidade, eu o fiz, interrompendo a conclusão do romance. Ao entregar-lhe o roteiro, para minha surpresa, ele convidou-me para dirigir o filme. Confesso que tive alguma experiência na direção de atores de teatro nos meus tempos na universidade e mostrei que era um roteirista capaz, mas jamais tive formação acadêmica como diretor de cinema. Tudo o que conhecia da arte cinematográfica era como espectador.O produtor encorajou-me: tratava-se de um filme de baixo orçamento e, se não saísse bom, ninguém ficaria indignado. Seria visto como um filme de um escritor que tentou fazer cinema e fracassou. Talvez fosse uma outra Alemanha, mais disposta ao risco. Não sei se hoje teria a mesma sorte. O acaso quis que o filme - de uma humildade extraordinária, produzido com atores chilenos no exílio - tivesse um sucesso inesperado.Após sua estreia na TV alemã, o jornal Frankfurter Allgemeine comentou que era um filme "maravilhoso", ao ser apresentado no Festival de Huelva, em 1983, conquistou o primeiro prêmio e também o do público.O filme chamava-se Ardiente Paciencia (Ardente Paciência) e ainda hoje às vezes é exibido em um canal de TV da Europa ou num festival de cinema - patrocinado por algum curador ou produtor que o vê com simpatia.O livro, publicado originalmente em castelhano, hoje está editado em 35 idiomas e a história foi adaptada em inúmeros países para o rádio, teatro (mais de duzentas montagens) e para o cinema por Michael Radford. Durante alguns anos, os jovens de muitos países usavam camiseta com uma das frases mais populares do livro: "A poesia não é de quem a escreve, mas de quem a usa".Acostumei-me a pensar que, com esta simples história de desavenças entre um grande poeta e um homem humilde, qualquer coisa poderia ocorrer, mas jamais que chegaria um dia em que ela se converteria numa ópera e que o papel de Pablo Neruda seria interpretado pelo mestre dos mestres, esse grande artista e maravilhosa pessoa que é Plácido Domingo.Conselhos. Ao falar do seu papel, Plácido disse algo muito importante e pessoal sobre meu romance: "Há um paralelo entre a minha pessoa e o personagem de O Carteiro de Skármeta, pois sempre tento ensinar os jovens, dando conselhos".Dei toda a liberdade para o compositor Daniel Catán, artista mexicano que vive há dez anos em Los Angeles e já adaptou para o teatro um texto de Gabriel García Marquez, trabalhar em cima da história, de modo que ele sentiu-se encorajado no trabalho de m transcrevê-la para uma ópera.Daniel enfrentou um desafio que o entusiasmava: fazer ópera em espanhol, uma língua poderosa que não tem muitos exemplos ilustres nesse campo. Guardando as distâncias, ele poderia ser visto como Mozart, que perseverou - e teve sucesso - para escrever óperas em alemão, quando todo mundo achava que ópera era um assunto absolutamente italiano. Para Daniel Catán, a língua de Cervantes e de Neruda é a maneira como vemos a vida, o que fazemos com ela. "Nessa visão nos deparamos com o que é verdadeiramente importante: o amor, a felicidade e a paixão." Ele está convencido de que uma língua é uma maneira de "ver".Há 15 anos, o filme italiano O Carteiro e o Poeta passou pelo tapete vermelho de Hollywood, com cinco indicações ao Oscar. Talvez ainda fosse muito cedo para um filme europeu vencer a competição (mais tarde, A Vida é Bela foi premiado) mas a verdade é que a indicação póstuma para Massimo Troisi como melhor ator não foi adiante - apesar da devoção com que sua interpretação foi recebida pelos críticos e o público norte-americano. Nessa ocasião, os membros da academia preferiram Mel Gibson e o seu Coração Valente, uma pílula amarga que até hoje não consegui engolir.Metáforas. Massimo Troisi criou um personagem com uma alma simples e grande, incapaz de dizer tudo o que sente, mas que a luz generosa de Pablo Neruda (Philippe Noiret) começa a transformar em lampejos de metáforas verbais sua deliciosa e imprecisa gesticulação napolitana. A morte de Troisi, em consequência de um ataque cardíaco logo após o último dia de filmagem, revestiu o filme de uma carga emotiva arrasadora.O filme franco-italiano é uma lembrança viva no mundo e os artistas que subiram ao palco da Ópera de Los Angeles tiveram que enfrentar grandes desafios: a inesquecível musica de Bacalov - premiada com um Oscar, a gloriosa interpretação de Massimo Troisi, o sólido encanto maduro de Philippe Noiret, a arrebatadora turbulência de Maria Grazia Cucinotta. Na sua versão para ópera, tem um elenco genial: Plácido Domingo como Pablo Neruda, Charles Castronovo como o Carteiro, Amanda Squitieri como Beatriz e a grande soprano chilena Cristina Gallardo-Domas como Matilde, a esposa do poeta. A obra é uma coprodução com o Le Chatelet (onde a estreia, em Paris, será em junho de 2011) e a Ópera de Viena, na Áustria.Assisti à estreia mundial em Los Angeles e pude ver e ouvir a impressionante ovação, de pé, do público e depois ler as elogiosas críticas americanas e internacionais. Vi Plácido Domingo, beirando os 70 anos, feliz. Como autor da história, que também está com quase a mesma idade de Plácido, também senti-me como um menino no dia do seu aniversário. Como podem ver, o Carteiro toca muitas vezes. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO ANTONIO SKÁRMETA É AUTOR E ACABA DE LANÇAR EM ESPANHOL O NOVO ROMANCE UM PADRE DE PELÍCULAQUEM ÉANTONIO SKÁRMETAESCRITORNasceu em 1940, no Chile. Durante a ditadura no país, se exilou na Alemanha e escreveu Ardiente Paciencia. O livro inspirou o filme O Carteiro e o Poeta (1994), que teve 5 indicações ao Oscar

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.