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Nas Asas da Esperança narra a história de um judeu em Varsóvia

Por Agencia Estado
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Em 1944, o Levante de Varsóvia, episódio no qual poloneses e russos lutaram pelas ruas da cidade contra o exército nazista, foi um dos marcos do início do processo de decadência das forças do Eixo, composto por Itália, Alemanha e Japão. Aproximadamente um ano antes, porém, na luta dos judeus contra as tropas do general nazista Jurgen Stroop - que havia recebido a ordem de Himmler, chefe da Gestapo, para eliminar o gueto de Varsóvia (local onde os judeus haviam sido mantidos durante a guerra) - configurava-se a primeira reação de um povo contra a humilhação imposta pela guerra, fazendo com que, por toda a Europa, tivesse início uma série de levantes contra a dominação alemã. Tal episódio passou para a História como o Levante do Gueto de Varsóvia que, mesmo controlado com violência, se tornou um símbolo contra o metódico massacre praticado pelos alemães durante a 2ª Guerra Mundial. A história do gueto e de seu levante já foi contada em livros como o do sargento alemão Heinz Jöst, que costumava fotografar a vida no gueto; ou no estudo do professor Marcos Margulies, Gueto de Varsóvia: Crônica Milenar de Três Semanas de Luta. As atrocidades cometidas nos campos de concentrações encontram relatos comoventes em livros como É Isto um Homem?, de Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz. Agora, Michel Kleinsinger, judeu que viveu no gueto durante meses, conseguindo escapar diversas vezes da morte, publica Nas Asas da Esperança, livro que narra a sua história e traz um disco com suas composições, muitas delas criadas em meio ao inferno da guerra. O relato de Kleinsinger, hoje radicado no Brasil, no entanto, não tem intenção de relembrar com detalhes as atrocidades e atitudes criminosas de grande parte dos oficiais alemães. Não que elas não apareçam, obviamente. Mas elas se fazem presentes como pano de fundo para a ação de pessoas que, mesmo colocando as próprias vidas em risco, o ajudaram a sobreviver. "Sou grato a essas pessoas que me ajudaram sem interesses dúbios, ou melhor com interesses de seres humanos, sem querer nada em troca, e escrevi esse livro para essas pessoas, para mostrar que, mesmo em momentos de grande dificuldade, há quem esteja disposto a dar algo de si para o próximo", diz. Para tanto, foram dez anos de lutas com as memórias, as lembranças, o sofrimento. "Deixava de lado toda a dor e a angústia provocadas pela lembrança da guerra, mas, muitas vezes, precisava ir ao encontro desse passado, sem deixar que ele tomasse conta de mim e do meu relato." Fuga - Uma dessas pessoas que ajudaram Kleinsinger foi Leszek, "um polonês, cristão, baixinho e muito inteligente", filho de um juiz, que revendia fora do gueto os sabonetes e cigarros produzidos por Kleinsinger e alguns companheiros. A troca era feita por meio do Tribunal de Justiça que, de um lado, dava para o gueto e, do outro, abria-se em direção à cidade de Varsóvia. Foi ele quem ajudou Moshe (como era chamado Kleinsinger) e sua noiva, Paulina, a fugirem. Na época, Kleinsinger pensava apenas em sobreviver e negociava no mercado paralelo mercadorias que atendessem à necessidade da população que "naquele momento", lembra, "necessitava de tudo". Meses antes, após desistir de fugir para o lado de dominação soviética com cinco amigos músicos, ele havia sido transportado para o campo de Lublin, espécie de escala para outro campo, o de Chelmno, onde milhares de judeus morreram fuzilados. Em Lublin, era chefe da equipe de limpeza do banheiro e, como tal, conseguiu um salvo-conduto para deixar o campo aos domingos pela manhã, estando de volta às 19 horas. Na cidade, entrou em contato com primos de sua noiva que, após certo tempo, o convenceram a fugir durante uma de suas saídas do campo, retornando a Varsóvia. De volta à cidade, reencontrou Paulina e retomou seus negócios, voltando a fabricar cigarros e sabonetes, vendendo-os a Leszek que, certo dia, o alertou de que os alemães se preparavam para levar um número cada vez maior de judeus aos campos de concentração, confirmando os boatos que corriam pelo gueto. Leszek o informou, também, que seus pais sairiam da cidade por dois meses e que, caso Kleinsinger quisesse, poderia fugir e ficar no apartamento deles enquanto procurasse outro lugar para ficar. Kleinsinger preparou-se, produziu e vendeu mais cigarros, juntou dinheiro e fugiu com Paulina. Do lado de fora do gueto, assumiu a identidade de Stanislaw Rozanski, católico praticante. "Nesse momento, tinha um grande vazio dentro de mim, parecia que renunciava à tradição na qual havia nascido e me formado: em plena guerra, eu me escondi de mim mesmo, desapareci oficialmente." A desconfiança fez com que ele e Paulina, agora Zofia Jasinska, saíssem do apartamento, com medo de que pudessem ser entregues aos nazistas por Leszek. Alguns dias depois, Kleinsinger descobriria que sua intuição o ajudara e que suas desconfianças eram infundadas: os nazistas levaram Leszek pela ajuda que dava a judeus, fuzilando-o antes mesmo de deixar o prédio, o que também aconteceria com ele e Paulina caso fossem encontrados no apartamento. Amigo - Nesse momento complicado em que, sem dinheiro, Kleinsinger não tinha a quem recorrer é que veio à sua mente o nome de Stefan Chrobak, um antigo cliente de antes da guerra. Foi ele que lhe conseguiu a identidade e a certidão de nascimento falsas, além de um lugar para que ele e sua noiva ficassem, na pensão de uma velha viúva. "Stefan corria um risco impensável ao me ajudar e sua coragem e disposição, sua amizade, foram responsáveis pela minha sobrevivência e a de Paulina após a fuga do gueto." Moshe voltou a fabricar cigarros, ajudado por Chrobak, que lhe emprestou dinheiro para que comprasse fumo. Ajudou o amigo, também, corrigindo-lhe a pronúncia de certas palavras, ainda um pouco carregada de iídiche, o que poderia denunciá-lo caso fosse interpelado por oficiais alemães. Em seu novo lar, Kleinsinger teve sua primeira grande decepção ao descobrir que Paulina, aquela que ele havia amado durante todos os momentos, havia tido outro homem, Max, diretor da fábrica à qual ela fornecia roupas e tecidos. Decidiu que, mesmo assim, continuaria com ela, não conseguia odiá-la. Amava Paulina e a defenderia. Percebendo que a viúva, espreitava-os, desconfiando da fachada de casal recém-casado, simulavam noites de amor, o mais alto que pudessem, afastando as suspeitas da velha. No entanto, Chrobak acreditou ser mais prudente deixar a casa e os colocou na fazenda de um amigo onde, também, precisariam manter a farsa. Após algum tempo, Moshe voltou a Varsóvia, precisava continuar a trabalhar, ganhar dinheiro. Chrobak, mais uma vez, subsidiou o início de suas atividades e ele pôde voltar a fabricar cigarros. Certa noite, acordou de madrugada, fez com que Paulina se levantasse e fugiram. Escondidos na estrada, puderam ver e ouvir oficiais alemães em direção à fazenda, em busca de um casal de judeus. Ouviram também, da fazenda, os moradores dizerem que apenas havia passado por lá um casal de poloneses cristãos, que tinham ido embora. Após algumas perguntas, satisfeitos, os oficiais partiram. De volta a Varsóvia, foram ajudados novamente por Chrobak e outros, como o dono de uma lavanderia que permitia a Kleinsinger utilizar o estabelecimento como ponto de venda de cigarros (à época, vender e portar tabaco era considerado crime passível de execução pelos alemães). Mas, além dessas pessoas, Kleinsinger ressalta a presença de uma companheira inseparável: a intuição, proclamada por seu pai no momento em que ele nascera, contrariando todas as expectativas (13.º filho, 12.º homem da família, ele nasceu quando sua mãe tinha 45 anos, idade, na época, que representava altíssimo risco para a mãe e o bebê). Rosto marcado, um brilho indefinido no olhar, Kleinsinger relembra o que lhe ocorreu no dia 20 de abril de 1944. Passando pela cidade em uma riksha (bicicleta de três rodas), encontrou bêbado na rua o porteiro de uma das fábricas em que costumava vender cigarros no início da guerra, a Têxtil Handels Geselshaft. "Como a fábrica era fornecedora de roupas para o Exército alemão, seu porteiro tinha em suas vestes a suástica: se fosse encontrado naquele estado com símbolos nazistas na roupa, aquilo seria considerado uma ofensa e ele provavelmente seria executado." Kleinsinger o colocou na riksha e seguiu viagem. Quando, no entanto, passaram pelo parque Ogros Saski, foram parados por um oficial nazista, que pediu a kenkarte, identidade. "Estava desesperado e tive a presença de espírito de, simplesmente, fingir que não era comigo e gritei ao bêbado: não vê que há um oficial aqui, entregue sua identidade". O bêbado o fez, quando se aproximou um soldado, querendo saber porque ele não se levantava. O outro respondeu que era porque estava bêbado e o soldado partiu - tive sorte, pois não sei se saberia manter a farsa na presença de dois alemães". O alemão exigiu, então, a arbeitskarte, carteira de trabalho, sendo atendido pelo porteiro. Após conferir os papéis, voltou-se a Kleinsinger, perguntando se ele trabalhava. "Não podia responder em alemão, pois minha pronúncia acabaria me denunciando então limitei-me a sorrir, como se estivesse feliz de estar na frente de um ser superior, um super-homem que nada havia feito senão trazer a justiça ariana à minha cidade." O bêbado respondeu a pergunta que havia sido dirigida a Kleinsinger: "Têxtil Handels Geselshaft´, disse e o alemão reconheceu a fábrica como fornecedora de seu Exército. "Quando percebi isso, sorri e repeti Têxtil, fazendo com que o oficial acreditasse que eu também trabalhava lá e ele nos liberou". Era 20 de abril e, caso o alemão pedisse para ver os documentos de Kleinsinger, ele teria sérios problemas: seus documentos haviam expirado em 30 de março. Música - Kleinsinger continuou sua vida, fugindo, anulando-se, apostando em sua intuição e na ajuda dos amigos que havia conquistado. Com o tempo, a guerra acabou. E sua trajetória entra na história não apenas pelo seu relato, mas também por sua música. Durante o conflito, tinha a música como amiga. "Qualquer saudade, qualquer sofrimento, qualquer alegria que tivesse, me dirigia à minha música. Nas noites em que pesava sobre mim a guerra e tudo o que estava passando, compunha e tocava." Esse testemunho sonoro, apreciado por pessoas como o maestro Eleazar de Carvalho e o jornalista Paulo Francis, acompanha o livro, em um disco intitulado Poema de Amor, interpretado pelo pianista Cláudio de Britto.

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