'Não sou provocador'

Para italiano Romeo Castellucci, peça não trata de Jesus, mas sobre o fim da beleza

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

O cheiro no ar anuncia que há algo de estranho no espetáculo Sobre o Conceito da Face no Filho de Deus. Defrontado com um idoso, seminu, que padece de algum tipo de incontinência intestinal, o público poderá questionar-se sobre qual o verdadeiro propósito do diretor Romeo Castellucci. Em algumas publicações estrangeiras, artigos tentaram explicar a natureza sintética dos excrementos usados em cena. Em outros títulos, foram os protestos de religiosos que ficaram sob os holofotes. Mas, para o encenador italiano, nada disso parece ser importante. "É uma reflexão sobre o ocaso da beleza", definiu ele, em entrevista ao Estado. O que está sob escrutínio, na montagem que será vista em Porto Alegre, é a relação de um homem com seu pai senil. Alguém que não mais controla suas ações, pensamentos. Nem suas funções vitais mais elementares. Grande parte dos espectadores não consegue entender a relação que o encenador estabelece entre esse drama familiar e a imagem de Jesus Cristo, emoldurada sobre o palco. "Compreendo que as pessoas encarem como uma provocação. Mas essa é uma palavra que, definitivamente, não faz parte do meu vocabulário", argumenta ele. "Os temas com os quais o espetáculo trabalha despertam reações diferentes nas pessoas, algumas exacerbadas. Mas não é esse o meu objetivo." Justificativas estéticas e históricas embasam a "heresia" cometida pelo artista. "Em toda a pintura da Renascença, Jesus é o modelo de homem. Então, ele não está ali evocando algo de espiritual, mas representando essa ideia de beleza humana", considera. Se no plano horizontal acompanha-se uma história de degeneração, a imagem de Cristo na vertical, a representar esse ideal de beleza absoluta, vem para provocar um ruído. "Para os cristãos, e não apenas para os católicos, a imagem de Jesus suscita a ideia de beleza, mas de uma beleza, digamos, complicada. É uma beleza que traz, em si, a memória do sofrimento, da paixão. Que nos lembra da cruz como instrumento de tortura", diz o diretor.Outros simbolismos também cercam a polêmica menção à divindade. "O tema do sacrifício do filho está em diversas passagens da Bíblia. O quase sacrifício de Isaac por Abraão é um exemplo eloquente", lembra Castellucci. Em 30 anos de atividade, o encenador tornou-se conhecido como representante do Teatro da Crueldade - uma modalidade que prima pelo fim da divisão entre palco e plateia, privilegia o aspecto ritualístico das apresentações e, sobretudo, lança-se à contestação dos dogmas sobre os quais repousa a cultura ocidental.Ao tratar dos laços entre pai e filho, a cia. Socìetas Raffaello Sanzio observa a relação que é o pilar da sociedade. "É algo absolutamente prosaico, com o qual qualquer um pode se identificar", justifica o diretor. Apesar da veracidade que deixa transparecer em cena, ele garante não ter se inspirado em nenhum episódio biográfico. "Não tem relação direta com a minha experiência. Meu pai morreu quando eu ainda era muito jovem, de um ataque cardíaco. O que é uma pena, porque gostaria de ter cuidado da fraqueza de meu pai, ainda que isso possa ser desagradável."Dissolução da beleza, da integridade física, da consciência. O espetáculo flagra algum lugar onde vida e morte coexistem. Um espaço em que o tempo se torna visível, material. Acima do palco, um relógio marca incessantemente as horas que correm. Paira não somente sobre o pai senil e o filho adulto, mas também sobre um grupo de crianças que sobe à cena. "São as três etapas do homem", pontua o criador. "E tudo se passa como em um plano sequência no cinema. Não há cortes, não há montagem. O que quero oferecer ao espectador é a experiência de vivenciar a passagem do tempo."QUEM É - Romeo Castellucci, diretor e dramaturgo Nascido na Itália, em 1960, o artista está à frente da Socìetas Raffaelo Sanzio. É criador de espetáculos controversos que exploram recursos tecnológicos e imagens de sofrimento de homens e animais.

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